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Portas trancadas

   — Meu Deus… — Marco levou a mão à boca, os olhos arregalados e confusos. Depois, levou a mão à cabeça, virando parcialmente o corpo para que a imagem à sua frente não fosse a pior da sua vida. — Meu Deus… — repetiu, a voz ganhando uma pitada de desespero. Os olhos transbordaram, contudo, aprisionou os soluços dentro do peito, sem saber ao certo como reagir.

    — Que porra é essa?! — escutou Áti adentrar o quarto, mas, de onde estava, não conseguia ver nada, senão o canto da parede. — Meu Deus… Dai! Dai!! Marco, ajuda aqui!

   Buscando forças no subsolo de suas emoções, ele se virou novamente, e, novamente, encarou o cenário horrendo. Átila ajoelhado ao lado da sua namorada e Dai, a mesma Dai que a poucos instantes havia lhe dado um beijo cheio de amor, caída, imóvel. Os olhos abertos​, vidrados ao nada, sem esboçar nenhum sentimento. Nenhum sinal de vida. Contudo, o pior estava mais em baixo. A blusa rasgada e a barriga aberta, destroçada como se fosse feita do mesmo pano de suas vestimentas; as vísceras à mostra, expostas ao mundo da forma mais grotesca. Os cordões de intestino se desenrolando como um apanhado de macarrão envolvido por um molho espesso. Sangue, muito sangue… Escorrendo pelo chão do quarto, a poça se tornava cada vez maior.

   Marco sentiu o estômago embrulhar de imediato, e não teve outra alternativa​, senão virar-se para o lado e despejar para fora tudo o que estava em digestão. A gorfada expeliu para o piso um suco de coloração rosada e aspecto pastoso; lembranças da última refeição.

   — O que aconteceu aqui? — Átila permanecia entranhado à perplexidade dos fatos, por mais que nada ali parecesse ser de verdade.

   Despindo-se de todo o pavor e tentando ignorar o estado do abdômen da pobre garota, Marco foi em direção ao corpo. As lágrimas escorriam como uma torrente descontrolada, mas continuava a segurar os urros. Átila, por sua vez, não tentava esconder nenhum pouco a sua comoção; o rosto já vermelho e totalmente molhado, o tronco arqueado sobre o peito de Daiane.

    — Ah… Dai… — Acariciou o rosto ainda quente de sua namorada. Fechou os olhos mortos, removendo da garota um pouco da expressão macabra. Dai parecia ainda sentir medo, mesmo não estando mais ali.

    Nada fazia sentido.

    Observou Átila se levantar com a mão enfiada entre os cachos castanhos. O rapaz iniciou um vai-e-vem, enquanto fitava o corpo com os olhos mais esbugalhados que Marco já vira em seu rosto.

   — Como? Como? O que… Caralho! Não tem como isso ser real! — A desolação do amigo parecia até maior que a sua própria.

   Por mais que nada fizesse sentido, a verdade era que não havia outra realidade senão aquela. Marco enxugou as lágrimas e observou o quarto, à procura de algum instrumento capaz de produzir o estrago presente em Daiane. Encontrou, apenas, os habituais móveis de um quarto: uma cama com lençóis encardidos e empoeirados, um guarda-roupa, um criado mudo antigo, uma caixa de madeira, usada para guardar as roupas de cama, e as cortinas, que estavam presentes em todos os cômodos, bloqueando a maior parte da luz do sol. No canto, uma porta dava para um banheiro. Marco correu até ela; o possível assassino poderia ter se escondido ali. Entretanto, o banheiro estava na lista de cômodos vazios.

   Retornou ao centro do quarto, finalmente dando atenção para as únicas coisas que não faziam parte do recinto: o corpo de Dai e as enigmáticas penas negras, que dançavam no chão a qualquer indício de movimentação do ar. Uma em questão estava atolada ao sangue que se espalhava, totalmente ensopada do líquido rubro.

   — O que tá olhando? — Áti questionou, desvencilhando-se do choro para que conseguisse falar.

   Marco ergueu o rosto para responder; para dizer que era impossível que Dai tivesse feito aquilo sozinha, que aquelas penas não eram do urubu que ele havia achado, já que não fora preciso adentrar nenhum quarto na primeira vez que estivera ali em cima. Iria mostrar para o amigo​ que as peças não se encaixavam, contudo, não teve tempo. Travou as palavras diante do vulto que passou no corredor, atrás de Átila; algo negro e grande e, principalmente, rápido. Passou como se espreitasse os dois rapazes, e não quisesse ser percebido. Entretanto, Marco o percebeu, surgindo e desaparecendo no espaço do corredor que podia ser visto pela porta escancarada numa ínfima fração do tempo.

Mansão dos UrubusOnde histórias criam vida. Descubra agora