X - JAULA DE MARFIM

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Não havia notado o silêncio, mas ele estava ali, materializado em forma de bocas abertas e olhares maravilhados. No alto do mezanino, Eloés encarava-o com interesse, os olhos a refletir em uníssono todas as luzes do salão. Limitou-se a tocar a aba do chapéu e menear de leve a cabeça, o olhar fixo nele.

— Um brinde aos heróis da cidade!  — anunciou o estalajadeiro. A música voltou com força e todos viraram de uma só golada seus cornos. As mulheres puxaram o capitão para dançar e os homens deram-lhe tapinhas nas costas, mas este seguiu direto para a escada, acenando e pedindo desculpas; alcançou a venatora em meio ao alvoroço ensurdecedor.

O mezanino largo era mobiliado com mesas de tampo redondo, a madeira desfiando-se em farpas, e sobre elas repousavam cornos de cerveja, garrafas de vinho e tragóis — cachimbos d'água sobre o qual se punha tabaco e essências, abrasados por peças de carvão; a água pela qual a fumaça resfriava-se era perfumada e adocicada, trazendo à boca o frescor das ervas e especiarias. A fumaça contribuía substancialmente para a atmosfera calorosa que imperava ali — sobretudo, Vinst pôde perceber, um grupo de mulheres risonhas próximas às janelas, o dondaï abrasado sobre o tragol.

— Não é verdade — começou ela. — Você sabe que não conseguiria sem a sua ajuda, Vinst. 

Capitão — corrigiu ele.

Capitão Vinst — o álcool já fazia-se perceber no hálito e na voz. 

— Foi a própria Vontade Única a usar meu corpo; não é o que disse, senhora?

— Alegre-se por ter sido parte de um grande feito! — exclamou ela, enchendo outra taça de vinho e a entregando ao capitão. — E isso em nada diminui sua parte.

— Tampouco a valoriza — replicou.

— É uma opinião. Diga, capitão — continuou, após um gole de vinho —, o que sentiu quando subiu sobre as ameias e chamou a besta para si? Veja bem — explicou-se —, não inquiro sobre o que o levou a fazer isso —  tal assunto está além de nossa alçada, apesar de eu estar certa de saber a resposta. Quero saber — disse, tocando-lhe o pescoço do capitão — o que aflorou em sua pele. Como pulsaram suas veias e reagiram seus membros?, é o que pergunto.

A mão da mulher, quente e suave ao toque, deslizou sob a barba e teria descido até o peito, se o capitão não a tivesse afastado — não sem delicadeza, há de se dizer. 

— Espera que eu comprove suas teorias ou que diga a verdade?

— É a verdade que buscamos — disse ela, com um sorriso. 

O semblante do capitão carregou-se ante as lembranças, ainda tão vivas em cada fibra do músculo contundido, o que tornava ainda mais impressionante como a mulher não mostrava qualquer sinal de ferimentos e tampouco seu ânimo decaíra desde então: foram duas serpes, afinal, e três dias apenas de descanso. Voltou para o corpo daquele Vinst acuado e aflito; temia sobretudo pela vida de Eloés, bem mais que pela sua própria, e não foi um sacrifício — muito antes um alívio — chamar a besta para si; fizera o que tinha que fazer, e, mesmo assim, lembrava-se muito bem o que foram os músculos da perna a fazê-lo saltar sobre a amurada e a garganta a gritar como um louco — e não a mente.

— Era como se— — começou Vinst, mas interrompeu-se. — Talvez pareça um tanto imbecil o que eu digo, mas subiu-me algo pelas costas. Algo quente; subiu-me até os ombros, e lá ficou, tomando a forma de um ardor — disse, pensativo. — A sensação é vívida, é o que eu posso dizer, mas descrevê-la— — e interrompeu-se outra vez. — Senti-me de súbito aquecido, como a emoção diante de um inimigo — mas não só.

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora