Prefácio

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Rapaz, eu nasci do amor, meus pais têm a história mais linda que eu conheço! Se não for para viver do amor, tô perdendo meu tempo neste mundo!

Éramos nós três contra o mundo. Sempre fomos. A professora do quarto ano, eu tinha só oito anos na época, me separou das minhas amigas porque eu falava demais e me colocou entre dois meninos chatos: um, que ria de mim, o outro, que entrava mudo, saía calado e tirava notão. Nem conversava com ninguém e eu ficava pensando se ele tinha alguma doença contagiosa. Ele nunca falava nada, nem respondia chamada, só olhava para a professora quando ela dizia: "Rafael!". Nunca tinha ouvido a voz dele e a gente estudava na mesma classe desde o primeiro ano.

Eu chegava em casa triste porque a escola, que era legal por causa das minhas amigas, tinha ficado um saco. Só as via no recreio e elas se uniam entre elas e começavam a me deixar de fora. Fiquei quieta como a professora queria que eu ficasse, mas isso não melhorou meu desempenho. Eu só ficava quieta porque eu tinha medo dos meninos do meu lado.

Um dia eu esqueci meu estojo em casa e tive que falar com um deles. O Lipinho pegou meu lápis emprestado, isso lá em casa, eu emprestei, mas não guardei o estojo de volta na mochila. Pensei comigo, se eu não tiver que copiar nada da lousa até o recreio não vai ter problema. Professor de matemática entrou na sala pedindo para a gente copiar da lousa. Eu nem virei para o lado, com o queixo enfiado no peito, mortinha de vergonha de falar, pedi:

— Me empresta um lápis? Esqueci o estojo.

Vieram dois lápis, de duas direções. Eu nem sabia de quem pegar. O Rafael, que nunca falava nada, disse que eu podia pegar a borracha dele, se quisesse. Agradeci, ainda um pouquinho nervosa, peguei o lápis do Gabi, o que ria de mim, e usei a borracha do outro.

Já era abril. Lembro que foi depois do aniversário da mãe porque no dia do aniversário eu caí da cadeira e ralei o joelho no tapete da sala enquanto pendurava balão na sala com meus irmãos. Lembro que o ralado no joelho ainda estava lá quando abri minha boca.

Eu, que era muito faladeira, fui colocada entre dois meninos para ver se eu calava a boquinha, mas verdade é que quase perto das férias eu era faladeira de novo e o pai me chamava de canto para conversar depois da reunião porque "eu era uma ótima aluna, aprendizado rápido, mas eu dispersava muito porque falava demais". Ninguém acreditava que eu fui capaz de fazer o mudo falar. O Rafa falava comigo e até já respondia "presente" na chamada e a mãe dele me deu um beijão no rosto quando descobriu que eu era a responsável por fazer o Rafa ser menos tímido.

A mãe dele dizia que o filhinho tinha fobia social, isso meu pai me contou depois, os pais sempre compartilham os podres dos filhos nas reuniões de escola e a mãe do Rafa compartilhou o podre do filho com o meu pai que contou dos meus podres. O Rafa tinha uma timidez tão grande, sempre introspectivo e caladão, mas quando eu pedi um lápis, se ele ficou nervoso de falar comigo, nem demonstrou.

O Rafa era o tipo que não gostava de fazer apresentação, seminário, nem trabalho em grupo. Não se mistura e esse é o jeitão dele. Não tinha amigos, só se divertia com os primos e a mãe dele tinha medo de como ele seria na escola. Ela me mandava docinho pela lancheira do Rafa, era legal, queria que eu falasse mais com o filho dela, que eu andasse com ele no recreio e eu andei, ué, quando não tinha ninguém olhando, ele era legal. A gente assistia os mesmos desenhos, os mesmos filmes, lia os mesmos livros e ele também tinha dois irmãozões.

Com o Gabi, o que me emprestou o lápis, ele tinha a mesma história que eu: foi separado dos amigos porque falava demais e estava detestando não ter com quem conversar, por isso, depois de me emprestar o lápis, aliviado por ver que eu não era muda que nem o Rafa, ele mesmo puxava conversa.

Para Sempre TrêsOnde as histórias ganham vida. Descobre agora