Prólogo - O que os olhos veem

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Suho era uma mulher belíssima. Arrancava suspiros e mais suspiros no Something Palace — um teatro de esquina — quando apresentava seu número com canto e dança. Estava tudo bem para a moça, mesmo que pouco soubesse dançar. A voz e a emoção que passava ao cantar compensava ao seu público — em suma masculino — no lugar que era para si como um lar.

Também havia o fato de Suho ser realmente bonita. Uma mulher francesa com traços orientais e pele sempre muito bem maquiada. Poucos sabiam de onde Suho havia saído e todos os seus fãs queriam um pouco da atenção da mulher que não deixava-os entrar no camarim ou invadir as coxias do estabelecimento.

Tudo bem que nem mesmo os colegas de palco invadiam seu camarim ou a viam arrumar-se na bagunça dos bastidores de um teatro de esquina na França nos anos perdidos de 1933. Os colegas de palco respeitavam o espaço da mulher que levava boa parte dos espectadores ao lugar. E respeitavam a dona do Something que protegia Suho do mundo.

A moça bonita de olhos brilhantes estava entrando na vida adulta com seus vinte e poucos anos, ninguém ali sabia o porquê ela encontrava-se perdida em um teatro com pulgas. Afinal Suho era bonita, bem educada e falava francês muito bem.

Chen — que era uma artista chinesa — não tinha todo esse dom. Havia vindo para o país da boêmia em um circo viajante. Artistas chineses eram bem vistos na época por sua rapidez e contorcionismo — era exatamente isto que Chen apresentava ali. A chinesa tinha a fala carregada e sabia muito bem que Suho não era nascida no oriente, o francês da moça era bom demais para isso.

Mas Chen, como os demais colegas não sabia quem diabos era Suho de fato. Viam a mulher entrado muito rápido no camarim e saindo mais rápido ainda dele. Ela não dava espaço para conversas fiadas sobre a vida; a única que possuía a sua atenção ali era Annia, uma cadelinha que participava do número junto aos dançarinos russos.

Porém Suho não era uma má pessoa. Longe disso, era uma pessoinha muito da boa que machucava-se com o fato de sempre se manter a espreita. No fundo queria poder sentar com os colegas do Something e beber com eles, vendo as luzes da cidade brilhar. Mas Clarisse — a dona do teatro e sua protetora — não permitia.

Era perigoso demais para alguém como Suho ser exposta.

Clarisse havia encontrado a moça quando esta ainda era pequenina, lá para os seus doze anos. Suho chorava sem parar e pedia ajuda nas vielas sujas da cidade luz. Na época, ainda usava calças longas e uma camisa amarelada como o garoto que que a sociedade dizia que ela era, porém tinha batom nos lábios e blush na face como a garota de fato se via. A cena surpreendeu a dona do teatro. Já havia conhecido outras mulheres como Suho antes e sabia muito bem o porquê a criança estava na rua.

Famílias tendem a não aceitar que os planos traçados aos filhos não se cumpram.

Suho estava pedindo comida na rua e era enxotada de todos os cantos como se o batom vermelho na boca fosse sinal de alguma doença. Clarisse sabia que se deixasse a garotinha ali — nada e nem ninguém mudaria o fato de Clarisse ver quem Suho era de fato, diferente das outras pessoas — a menina acabaria sendo levada para algum antro de prostituição.

Decidiu então proteger a garota e levá-la ao seu teatro, onde ensinaria o básico para viver. Esperava que Suho entendesse que vender o seu corpo não era uma solução, mas sabia que a garota veria outras artistas tentando conseguir mais dinheiro e uma vida sossegada com isso. Something não era perfeito, mas era o melhor que poderia oferecer.

— Hey, garota, qual o teu nome? — Clarisse perguntou logo quando se aproximou e viu os olhos da menina brilhar por ter dito a palavra garota.

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