CAPÍTULO • 06 (Degustação)

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Agora sim ela parece interessada: solta um miado longo e manhoso. Morta de fome!

Visto uma touca felpuda, finalizo com um belo batom vermelho e faço carinho na cabeça da ingrata. Quando encontrei a figura dentro de uma caixa de papelão no meio da rua, não imaginava que se tornaria minha melhor amiga, ou que eu seria esse tipo de pessoa que conversa com os animais feito uma doida.

Ao lado da cama, em cima da escrivaninha, a fotografia de Nicolai me sorri. O cenário já desbotado do jardim contrasta com nossas roupas inverneiras e quentes, mas o sorriso no rosto de ambos era cândido. Não existe na imagem nenhum indício que denunciasse os eventos seguintes ao nosso último passeio, nenhuma pista gritante para que o desfecho da nossa relação pudesse ser evitado.

Que ele me deixaria para trás.

— Você é outro idiota — digo para o retrato, que possui marcas de dobras no meio. — Não pense que está perdoado só porque saiu da gaveta. — Coloco minha bolsa no ombro e pego o guarda-chuva pendurado atrás da porta. — Tantas maneiras de me chutar da sua vida, escolheu uma foto antiga, um pedido de desculpas genérico e uma morte básica para completar. Agora eu me tornei a tia solteirona e pirada da cabeça que conversa com gatos e fotografias de pessoas mortas.

Vou direto para o inferno por fazer piada com essas coisas, mas é isso ou aceitar que o vazio deixado por Nicolai ainda machuca.

A gente se conheceu logo após o falecimento dos meus pais, quando um empresário muito rico comprou o prédio em que os dois trabalhavam e começou uma obra sem verificar se a estrutura aguentaria o projeto. Metade do teto desabou bem em cima dos escritórios e muita gente ficou ferida.

Minha mãe não teve chances, ela estava debaixo do contrapiso quando tudo aconteceu, mas meu pai ainda ficou internado por três dias até os médicos constatarem o óbito.

Com apenas dezessete anos, perder os pais em um acidente cujos culpados nunca foram divulgados pela polícia e muito menos pela mídia gerou em mim uma revolta nociva. Naquela época, aprendi uma importante lição.

O dinheiro é como um medidor de força e, quanto mais se tem, maior pode ser a capacidade de destruição nas mãos da pessoa errada.

* * *

Ao chegar nas ruas curvilíneas que antecedem o metrô, com o guarda-chuva equilibrado contra o vento, me concentro para não cair dentro de uma poça. Só uma coisa na Rússia é mais irritante do que o temperamento de certas pessoas: o tempo.

No filme Dançando na Chuva, quando Don Lockwood faz sua icônica dança de sapateado... na chuva, há quem associe a cena em questão à uma metáfora da verdadeira felicidade — após beijar Kathy Selden, junto com a sensação de sucesso na carreira, ele resolve comemorar dançando no meio de um temporal. Sim, muito lindo, maravilhoso, mas... Bem, eu não sou essa pessoa!

A carreira? Só despenca. Beijo? Nem no espelho. Chuva? Detesto. E nem vou entrar no mérito da dança; um anão de jardim teria mais coordenação.

Há poucas pessoas transitando para uma manhã de sexta-feira, mas o horário de maior movimento só começa depois das sete horas, quando as grandes empresas iniciam o primeiro turno e os pontos turísticos começam a lotar com estrangeiros.

O buffet costuma subsidiar poucos eventos fora das datas comemorativas mais famosas (o período entre o dia da Constituição da Federação Russa, seguindo pelas festas de Ano Novo até chegarmos ao Svyatki é mais movimentado) mas há sempre uma festa ou casamento que garante alguns trocados extras pelo resto do ano.

Em meu rodízio de empregos, já trabalhei em todo o tipo de coisa, desde secretariado à arte oculta das telefonistas de marketing. Começar tão jovem no mercado de trabalho foi meu principal erro, sobretudo porque nenhum empregador se compromete a registrar uma menor estrangeira e órfã.

Entre Acasos e Destinos | LIVRO 2 | DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now