Parte XIV

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Enquanto olhava para aquelas sereias horrendas, meu coração era esmagado. Eu não queria ser daquele jeito. Podia até aceitar viver no mar e não ter pernas, mas ser como aquelas criaturas era o pior destino que eu poderia pensar para uma pessoa. Eu não desejaria isso nem para meu pior inimigo, por que então Salizar achava que eu, dentre tantas pessoas, merecia aquilo? Eu era tão ruim assim?

Eu sabia que se tivesse lágrimas, elas estariam descendo naquele momento. Eu podia dar adeus às chances de ficar com Loran. Ele sairia correndo à menor aproximação de uma criatura como aquela.

As três me olharam mais um pouco e cochicharam entre si coisas que não entendi, depois se viraram e nadaram em direção à superfície.

Ainda me recuperando, percebi que o quadro se complicava, pois elas estavam indo para o navio, e eu sabia bem que não tinham intenções boas.

Quando pensei em me mover para tentar tirar Loran e os outros marinheiros do perigo, elas já estavam atacando. Empurraram o casco do navio, uma de cada lado, chacoalhando o transporte de madeira, mostrando que eram fortes o suficiente, talvez, para afundá-lo.

Enquanto eu nadava para cima com determinação, ouvia os ecos das vozes aflitas dos homens, que já sabiam que estavam sendo atacados por sereias. Eles jogavam coisas no mar para tentar atingi-las, lanças principalmente, e passei a ter que desviar delas. Isso complicou minha tarefa.

As sereias botavam o rosto para fora da água, às vezes, para amedrontá-los, emitindo sibilos malignos, então incidiam as caudas com força contra o casco do navio, fazendo com que este balançasse mais do que já balançava no mar agitado pela chuva. Após algum tempo nessa batalha – os homens tentando atingir as sereias com suas armas e objetos e segurando-se para não caírem na água com o balançar, e as sereias atacando impiedosamente, por vezes incidindo elas mesmas os objetos lançados contra o navio para perfurá-lo – a derrota dos homens se tornou iminente.

Eu não sabia o que fazer, não tinha arriscado confrontar uma delas ainda, pois não fazia ideia de como poderia vencer um monstro experiente daqueles. Eu tinha que ser estratégica, então rodeei o navio mais um pouco, angustiada ao ver tal barbaridade, procurando por qualquer brecha.

Foi quando vi Loran, empoleirado na amurada, segurando-se numa das cordas que prendia a vela. Ele dava ordens aos outros e um homem atrás dele lançava flechas onde ele apontava. Dali ele conseguia ver, através da água, o caminho que as sereias estavam fazendo.

– Ali tem uma, ali, atire! – exclamou, apontando para onde eu estava com a cabeça encoberta por apenas uma fina camada de água.

Assustada, nadei para desviar. As duas sereias morenas, aproveitando uma onda grande, chacoalharam o navio de forma violenta, e Loran se desequilibrou, caindo no mar.

– LORAN! – gritou seu companheiro.

Loran afundou a menos de dois metros de onde eu estava. As flechas pararam por um instante, pois o marinheiro que atirava não queria arriscar atingir o amigo.

Meu primeiro pensamento foi chegar a Loran antes que as outras três o fizessem. Nadei mais rápido do que nunca e agarrei-o, então fui o levando para o mais perto possível da escada onde ele poderia subir de volta ao convés. Senti as outras três nadando atrás de mim.

Acelerei o ritmo, começando a me sentir sem ar pela primeira vez, e então uma delas segurou minha cauda. Balancei-a com urgência, mas não consegui me soltar. Vi as mãos da loira se esticando para pegar Loran. Naquele momento, senti mais raiva e determinação que jamais antes. Queimava dentro de mim, eu não podia falhar, não com aquele homem.

Assim, soltei-o, e no mesmo segundo estiquei as mãos para frente. Não precisei tocar em nada ou em ninguém. Eu havia sentido a força subindo, chegando aos meus dedos, e então eles acenderam e uma luz prateada muito forte se espalhou. Ouvi os guinchos das sereias e senti um alívio na carga enérgica dos arredores. Quando abri os olhos, que enxergavam muito pouco depois de tudo aquilo, elas não estavam mais lá – corriam para longe.

Loran estava inconsciente, descendo vagarosamente para o fundo. Alcancei-o e o levei até a escada. Quando sua cabeça veio à superfície, ele despertou. Estava muito confuso e agitado e ficou mais ainda quando viu que era eu o segurando.

– Agnes? – E olhou para cima, para os companheiros que se inclinavam na amurada para ver o que acontecia. – O que está acontecendo aqui?! – Seus dedos seguravam com força nas cordas.

– Elas se foram. Eu não sei que tipo de magia foi aquela que fiz, mas as afugentou.

Ele continuava atordoado. Franziu a testa.

– Você está aqui de verdade? O que está fazendo nua? Por quê...?

Eu não respondi, não sabia o que falar, apenas entreabri a boca e olhei para cima. Os outros pareciam já ter entendido. Loran seguiu meu olhar, depois voltou a me fitar, ainda receoso. Seus lábios sorriram com desconfiança.

– Você não é uma delas, não é? É claro que não. Você não se parece com elas. Talvez estejam brincando com a minha mente...

– Loran... – Encarei-o firme. Ele estava muito trêmulo, dividido entre subir as escadas para sair daquele mar perigoso e acreditar que havia uma chance de eu ser uma garota perdida como da outra vez.

– Você é uma delas, não é?

– Eu acabei de salvar a sua vida, como posso ser uma delas?

– Você está mentindo! Está brincando comigo... me enlouquecendo!

– Loran, escute. – Cheguei um pouco mais perto. Ele começou a subir um degrau. Fiquei onde estava. – Por favor, você tem que acreditar em mim. Eu preciso de ajuda...

– Mostre-me as suas pernas! – ele pediu. Engoli com dor. – Vamos!

Eu não podia adiar aquilo. Ele sabia. Ele não queria me ouvir.

Ergui a ponta da cauda, que saiu à superfície. Um engasgo coletivo veio dos marinheiros, e Loran abriu a boca em choque.

– Por favor, vá embora.

– Loran...

– Você tem que sumir daqui e me deixar em paz! Agora!

Meus olhos teriam se enchido de lágrimas naquele momento se pudessem. A visão nos meus dois olhos começou a falhar mais ainda. Toquei meu rosto. Eu não era um monstro, não ainda, mas para Loran isso não importava.

Mergulhei de volta sem olhar para trás, meu coração mais partido do que tinha ficado na noite em que ele disse que iria embora. Porque agora era minha vez, eu tinha de deixá-lo ir, e a partir deste dia, não deveria haver mais nenhuma esperança. 

O Lado Escuro do MarOnde as histórias ganham vida. Descobre agora