Oitavo Capítulo : Virgínia esclarece algumas coisas

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Sábado, 12 de julho de 1975.

Ainda sob as dores do parto, Renato foi carregado por Virgínia para dentro de um táxi alaranjado, que os levou de volta para o prédio onde moravam, na Rua Fernando Amaro. Ambos não disseram nenhuma palavra, muito embora Renato estivesse de olhos arregalados e vermelhos, com a cabeça deitada sobre as pernas de Virgínia no banco traseiro do veículo, enquanto fazia alguns gemidos de dor e repetia sem parar - e sem provavelmente ter consciência do que dizia: Libera-me, Domine... Libera-me, Domine...

Já dentro de seu apartamento, Renato deitou-se pesadamente no sofá e Virgínia foi até a cozinha, de onde trouxe um copo com água e um pano úmido. Deu-lhe de beber e passou a limpar seus ferimentos na boca e na cabeça, fazendo carinhos com as costas das mãos em seu rosto, passando os dedos em sua barba rala. Após passar a madrugada inteira acordado, caminhando a esmo pela cidade, vivendo um atormentado calvário, sendo acossado por mil pensamentos barrocos e - a cereja do bolo - tomando uma bela surra na alvorada, Renato parecia agora um andarilho desnutrido, e Virgínia fazia o papel de gentil enfermeira.

Eu vi a rosa que você pintou naquela fachada aqui perto - ela disse. Obrigado, achei linda...

Ah, sim - ele respondeu, suspirando. - Gostou da cor?

Azul, inquietante, exótica...

Virgínia o abraçou e o beijou no rosto. Finalmente ele a sentia de novo perto de si, dentro de seu abraço, sua presença física aveludada, macia, confortável e - ao mesmo tempo - entrecortante, angustiante, maligna.

Pensei que nunca mais iria te ver ao meu lado - comentou Renato, cheio de feridas.

Não se preocupe. Estou ao seu lado agora. Sou como você; somos iguais, seres divinos. Você é um anjo - e eu também...

Renato sorriu forçosamente. Em seguida, perguntou:

Um anjo mau?

Talvez. Alguém que faz o que tem que ser feito.

Quem é você, afinal, Virgínia? Ou melhor: o que é você? Uma vampira, certo? Eu sei disso...

A esta altura, qualquer coisa poderia acontecer: não saberia mais notar a diferença entre ilusão e realidade. Virgínia poderia muito bem ser atingida por um raio luminoso quente e vermelho; um chifre poderia brotar em sua testa e um par de asas gigantescas de borboleta florescer nas suas costas e, assim mesmo, cairia como um pato nessa ilusão. De qualquer maneira, sua intuição de que algo estava errado na aparente realidade permaneceria. Algo realmente estava colorido artificialmente no mundo preto e branco ao seu redor - isto era a única verdade da qual tinha certeza. Reconhecer a si mesmo como um estranho no ninho; o louco da vez; um erro de programação no mundo fabricado. Atacar a falsidade oca do cenário ao seu redor parecia sua única opção.

Virgínia ficou em silêncio e foi até a cozinha.

O mundo inteiro era uma armação teatralizada exatamente para machucar Renato.

Porém, em situação de cansaço extremo, lutar contra o mundo parecia uma decisão quixotesca, e a tendência geral era que simplesmente quebrasse a cara no chão, ou melhor, nos moinhos de vento ao seu redor. Exausto da luta vã, riria de si mesmo por ter acreditado em tantos absurdos, e finalmente largaria tudo; faria uma peregrinação pelo deserto e daria o anti-alerta aos seus seguidores: - "Este mundo é real, é palpável, não há nada lá fora além dele! A dualidade observador/mundo é um engodo! Só há o mundo, e nada mais!"

Isto ou: - "Fujam para as montanhas!" - daria na mesma. Era preciso decidir de uma vez por todas: estava sonhando ou estava acordado? Mas decidir em qual realidade viver parecia algo materialmente insano para seu espírito frágil. Qual versão do mundo comprar? Isto ficava ao gosto do freguês. Ele simplesmente suspirou, limpou seus olhos e escutou a resposta de Virgínia. Sem compromisso.

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