Pedaços do passado

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2009

O mundo é tão irônico quando se trata das voltas que ele pode dar. Vestir o uniforme do time de torcida me fez criar a fantasia de imortalidade diante de todos ao meu redor; principalmente daqueles que me amaram quando eu não era nada. Senti-me superior quando na verdade não passava de uma artista de circo trocando de faces até esquecer-me de qual realmente era a minha verdadeira. O que era real tornou-se uma mentira, e a minha mentira tornou-se real. Costumava andar para lá e para cá exibindo meu uniforme, convencida de que ninguém nunca faria da minha vida um inferno porque dessa vez era eu quem estava no controle. Quão tolo pode ser o ser humano que acredita no poder?

Minha mentira me transformou naquilo que eu mais temia: o agressor. Tão fútil aquela garota que costumava sonhar se tornou...tendo o mundo em suas mãos e um vazio existencial que a tornou oca por dentro. O tempo me anestesiou contra o remorso de ser o terror de outros adolescentes, o desejo de agradar aos outros trancou meu caráter em um poço fundo o bastante para que eu o deixasse de lado durantes anos. O que eu ganhei com isso? Nada realmente. Adolescentes sofreram bullying, minhas mãos estão manchadas com o sangue de Natalie tanto quanto das pessoas que a induziram a saltar daquele terraço, e não há nada que eu possa fazer para reverter minhas ações; foi o que me matou pouco a pouco, até que eu estivesse aqui, sentada na frente de uma psicóloga 24 horas depois de tentar tirar minha própria vida.

— Por que você se responsabiliza pela morte de Natalie? — perguntou a Dra. Stevens, uma jovem mulher negra de olhar penetrante, cabelos cacheados e sorriso acolhedor.

Meus pais dormiram comigo noite passada, Sofia entre nós sem entender o que acontecia depois de acordar com o desespero de todos em tentar arrombar a porta do meu quarto. O pai de Lauren precisou buscá-la para que ela me soltasse de seus braços quando meu pai correu para livrar-se da arma e Clara acompanhou minha mãe para lhe dar água antes que desmaiasse de tanto chorar. Meu celular vibrava sem parar em algum canto do quarto, mas não me preocupei em atendê-lo em nenhum momento. Eu precisava descansar minha mente, longe de tudo, longe de todos. O dia seguinte amanheceu chuvoso, meus pais me acordaram delicadamente, oferecendo café da manhã e pedindo para que os acompanhasse à um psicólogo. Não houve pedido de desculpas em nenhum momento sobre tudo o que me falaram dias antes, quando lhes pedi ajuda. Deixamos Sofia na escolinha e fomos até esse consultório perto da escola, eles me deixaram na entrada prometendo que meu pai me buscaria no fim da consulta. Eles precisavam trabalhar.

Entrei timidamente no consultório sem saber exatamente o que dizer para a moça da recepção de sorriso forçado. Ela claramente não queria estar ali. Falei a primeira coisa que me veio à mente, que provavelmente havia algum horário marcado para Camila Cabello. A moça pareceu notar que eu não sabia exatamente o que estava fazendo, e passou a me tratar com mais gentiliza. Havia sim uma consulta de emergência marcada em meu nome, e parece que o fato de estar escrito "emergência" ao lado do meu nome tornou a recepcionista ainda mais amigável, como se sentisse por mim. Seu olhar de pena refletia as bolsas escuras em baixo dos meus olhos, meus cabelos sem pentear, meu rosto pálido e a expressão de cansaço estampados na minha face. A verdadeira, ou o que restara dela.

— Eu nunca a enxerguei. — falei encarando minhas mãos em cima da mesa. — Estava tão presa no meu próprio mundo que não vi o que fizeram com ela.

— Acha que as coisas teriam sido diferentes se você a tivesse enxergado?

Dei de ombros.

— Eu poderia ter parado ele. — meu estômago embrulhou ao pensar em Bob, precisei ser forte para conter o vômito. — Tudo o que ele fez, com Natalie e com outras garotas...

— Inclusive com você. — ela concluiu, sem tirar os olhos de mim.

— Inclusive comigo. — concordei, sendo impossível prender o choro àquela altura. Doía demais pensar no que acontecera naquela festa com Bob. — Fui ignorante o suficiente para pensar que ele havia feito...aquilo...apenas à mim. E agora uma garota está morta e outras tantas estão traumatizadas.

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