Parte I

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     Sou eu um velho teimoso a observar os ofícios da viuvez anciã. E dentre os grandes e perpétuos ofícios de velhos viúvos, são vistos por aqui: o andar a esmo pelo vilarejo; o reclamar da política com os igualmente velhos amigos; pescar no ribeirão que corta nossa terra, ou ainda depositar as economias de toda uma vida em qualquer bar mais próximo de sua casa, entretendo-se tanto com bebidas quanto com jogo do bicho. Entretanto, nem o Camarada Brasta e nem eu exercemos tais ofícios. Para encurtar tal depoimento, ou ainda tais sinceras lembranças, desejo que fique a conhecimento do leitor que o camarada Brasta é o homem que irei matar.

     No dia em questão neste relato, estávamos então sentados na parte da frente de minha casa. Lugar este parecido com o que chamam de varanda nas cidades mais elegantes de Minas Gerais. Era um dia lindo, um dia típico de inverno de Caminho da Fé, cidadezinha mineira onde estas memórias se passam. O tempo era seco, de clima leve, de pressão atmosférica reduzida, de calma e de frio.

     Ah, o frio de Minas Gerais. O gélido véu que acoberta todos os seres vivos e mortos sob o céu divino. Castigando uns, abençoando outros. Interferindo diretamente com a cultura organizacional que o vilarejo/cidadezinha de Caminho da Fé possuía – e que de 'organizacional' não possuía, em suma, nada.

     Pois bem, o frio de Minas Gerais visitava os dias dos pobres cidadãos que habitavam os velhos casarões, as velhas fazendas e também velhos casebres deste belo vilarejo. Os cidadãos eram simples, cada qual não ganhava muito vendendo seus produtos de agricultura, mas o vilarejo, como um todo, consistia em parte quase significativa da economia sul-mineira. É, talvez eu esteja exagerando.

     O vilarejo possuía fazendas. As fazendas possuíam, cada qual por sua individualidade, os seus 'ganha-pão'. A do seu Joaquim Pereira plantava café. A de seu Benedito Sossego plantava, por incrível que possa parecer, café. A da viúva Dona Imaculada Torres, pretendente horrenda, esta, de pelo menos cinco homens, também plantava café.

     Já deve o leitor ter irritado-se com a incrível repetição do cultivo de café nestas últimas palavras. Pois bem, se assim o for, lembro-lhes bem que a fazenda vizinha, do camarada João Brasta era por si só, única na vila, plantadora de feijão, laranja, algodão e algumas frutíferas (estas últimas para consumo próprio do camarada Brasta). Vale lembrar ao leitor que minha fazenda plantava café, mas também possuía eu criação suína e bovina, de modo que pude construir vida boa no vilarejo de Caminho da Fé.

     Sem mais divagações momentâneas, o frio do sul de Minas Gerais atingia seu ápice, como ocorre normalmente no mês de Junho ou início de Julho. O céu, como talvez já tenha eu lembrado e dito, o céu era de um tom absurdamente azul. Um azul gélido, que nestes magníficos meses do ano admirava de maneira espelhada os olhos do camarada que se encontrava sentado ao meu lado, o fazendeiro seu Brasta, um possuidor de cultura e conhecimentos maduros e veteranos.

     O camarada vestia sua tradicional calça jeans rasgada na altura do tornozelo esquerdo, de modo que sabia eu que havia trabalhado naquele dia e que dava agora lugar à escuridão da noite. Pois bem, sua calça jeans escondia-se numa das extremidades – a inferior – em um par de botinas velhas, de cor de burro de roça, judiadas pelo tempo e pelo trabalho nervoso típico dos grandes e dignos fazendeiros da cidadezinha. Na outra das pontas, a calça terminava numa esfarrapada e fina camisa xadrez, alterando-se os quadrados de cores de azul ou vermelho desenhados, camisa esta engolida pela cintura da calça, e estranguladas então firmemente pelo cinturão de couro, de cor e judiação iguais às do par de botas do velho. Acima da camisa xadrez, abria-se um peito branco-cabeludo, todo rugoso e vermelho de sol, o qual ficava logo abaixo do pescoço de veias corridas e nervosas, sempre aparentes. O pescoço grosso, por sua vez, possuía o trabalho vitalício de sustentar aquela cabeça abobadada que possuía o camarada. A cabeça mostrava, então, os olhos de gélido azul, o nariz firme e fino, os lábios igualmente finos, e as orelhas típicas de velhos: sempre aparentes.

     – Enrico, meu amigo, de quem comprou você esta cachaça? – perguntou seu Brasta.

     – Pois esta fiz eu mesmo, diacho. Bastou comprar a cana.

     – Pois bem sabemos, mentiroso, que o senhor não sabe destilar nem os pensamentos desta sua cabeça oca.

     – Ara! Mas destilei a pinga e destilo ainda, um dia, o cérebro dessa sua maldita cabeça enorme, diacho.

     – Está bem, está bem. Não falemos mais nisso, portanto...

     – Comprei a pinga do camarada José.

     E servindo-se novamente da saborosa aguardente, continuou o fazendeiro:

     – Mas a cachaça é ótima, homem. Sabida! Torna novamente vivo o que há dentro de nós!

     – Ah sim? Pois vive-te melhor e mais feliz agora, o quanto puder. E amanhã volte a reviver teus interiores nesta fazenda, caso deseje.

     – Sim, homem, sim.

     – Está combinado!

     E tendo secado a guampa que cheirava ainda à álcool, o camarada Brasta ainda soltou:

     – Mas para que deixar para amanhã os assuntos que podem ser resolvidos hoje?

     Meus olhos colocaram-se então a encarar aqueles glóbulos de gelo do camarada, que por sua vez se fixaram de volta no restante de alma que ainda habitava o interior dos meus, marrons. Meus braços tiveram ainda os fios eriçados diante de tal visão diabólica. Os olhos do ser vivo-morto que se encontrava em minha frente perfuravam todos os involuntários pontos de meu semblante, o que me acometeu, de súbito, minúsculos espasmos faciais invisíveis aos mesmos olhos cor de neve, já judiados pela idade, donos da causa de tudo isso.

     – Pois sente-se, camarada, sente-se. Sirva-me uma dose, sim? Ah, assim está bom. Assim está ótimo!

     E após ter servido meu copo, encostou o mesmo sobre a mesa a qual apoiava-se o garrafão de vidro que envolvia a aguardente. Ainda disse:

     – E agora, caro Enrico, vamos então aos assuntos. Afinal, que pode esta boca velha dona de alguns dentes contar à ouvidos tão maduros, tão experientes?  O que podeesta boca velha dona de alguns dentes contar à ouvidos tão maduros, tãoexperientes? O que pode contar então queseja novidade à mente que ainda não começou a esquecer-se de nada? – Deabsolutamente nada.

     – Pois bem, camarada Brasta. Ajeita estas ancas e escuta. Escuta bem. Se até o final de minhas falas não sair o senhor correndo pela minha porteira de frente cheirando à urina e com o rabo encurvado – pode você chamar de medo, ou receio, qualquer coisa que queira o senhor chamar (medrosamente) –, pois se o senhor não sair arrastando-se daqui à igreja a pedir proteção divina, que esta cachaça seja o presente de meus dedos aos seus.

* * *

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⏰ Last updated: Apr 17, 2018 ⏰

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Os Dois FazendeirosWhere stories live. Discover now