incipti prologus

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Londres, 1769


A chuva caía forte sobre o vilarejo de Easglefield ao norte da Inglaterra. Da janela do seu quarto, o garotinho observava as gotas caírem na terra umida e deixar pequenas manchinhas na mesma fazendo vários buraquinhos.

Atraído por som abafado que parecia vir da sala de estar, o menino caminhou na ponta dos pés em passos curtos até alcançar a porta. Fechando um de seus olhos, tentou espiar pela fechadura mas tudo que viu foi a parede escura do corredor num formato estranho. Esticou novamente seus pezinhos e alcançou a maçaneta, suas mãos pálidas e pequeninas seguraram na mesma enquanto tentava puxar a porta sem emitir som. Quando o grande objeto de madeira rangeu, seu som foi cortado pelo da tempestade que acontecia do lado de fora e o menino caminhou em silêncio até a sala de estar sabendo que se fosse pego fora da cama àquela hora, o Sr. Bardock provavelmente o castigaria. Conforme a criança se aproximava os sons incompreensíveis ficavam cada vez mais altos e tangíveis.

O garotinho escutou a voz de sua mãe repleta de súplica e mesmo sem entender o que ela havia dito, e sendo ingênuo demais para notar o medo em seu tom, uma felicidade inesperada o inundou. Era a voz de sua mãe. Sua mamãe havia voltado para ele! O menino se esconde atrás da parede e põe apenas a cabeça para fora, com o intuito de espiar. Seu pai encontrava-se de pé em frente a Helena que estava com o vestido e o corpo sujos de lama, alguns arranhões e hematomas em seus braços. Havia uma mancha roxa em seus olhos e sobre a pele de seu pescoço. Nenhum dos dois parecia feliz, do contrário, ambos estavam bravos demais para perceber os olhinhos curiosos que os observava.

"Não faças isso, eu amo-te!" a mulher implora como se seu suposto amor fosse capaz de pará-lo. Seus lábios e mãos tremiam, lágrimas ameaçavam escapar de seus olhos. Ela agarrou o colarinho do marido, deixando encardido ao que suas mãos o tocaram. Seus corpos estavam próximos, a cintura da mulher inclinada na diração do marido. "Por favor... Perdoe-me!" ele precisava acreditar nela. Ele não podia...

O homem sorriu. Um sorriso diabólico e maléfico. Decidiu que já havia ouvido o suficiente daquelas mentiras e sem esforço, atirou a mulher na parede oposta a eles com brutalidade. Helena caiu em cima de uma cômoda, as taças que ficavam sobre o móvel partiram-se e alguns cacos perfuraram sua pele. Um grito escapou por sua garganta, havia batido a cabeça e sabia que já perdera a batalha antes de lutar. Abriu os olhos e seu olhar perdido cruzou com o de seu filho que era repleto de angústia e confusão. Esboçou um sorriso e murmurou sobre o quanto amava-o.

Bartolomeu Bardock pareceu se irar ainda mais com as palavras que pensou serem dirigidas a ele. Pegou uma adaga gélida e afiada nalgum canto da sala e andou sem pressa até a esposa. Ficou entre suas pernas que pendiam próximas ao chão e posicionou o objeto frio na garganta da mulher, aplicando um pouco de força fez um pequeno corte permitindo que um pouco de vida escorresse até a nuca da mulher.

"Tu me traíste. Depois de tudo que eu fizera por ti. Tu me traíste!" repetiu as palavras num tom cortante. Era um misto de amargura, ódio e decepção. "Destruiste nossa família e agora pagarás por isso. Nosso filho não merece uma mãe como tu."

Helena abriu um sorriso torto carregado de deboche, se esforçando para arquear uma sobrancelha. Seu tom foi desdenhoso quando disse: "Thomas não é seu filho. Há muito que não és o único em minha vida. Eu nunca o amei... Realmente acreditavas que alguém seria capaz de amar um ser como você?" Ela teria continuado se a mão de Bartolomeu estalando em seu rosto não a calasse. O sorriso mesquinho permanecia em seus lábios.

O homem não quis mais prolongar aquilo e sem cerimônias enterrou a adaga em seu pescoço, os rastros iam de sua nuca até seu decote manchando o vestido branco o deixando carmesim. O cheiro do líquido vermelho causou um efeito em si e ele sorriu afetada ao saber que tomaria do sangue de sua amada.

O garotinho, que observava a cena do corredor sentiu um aperto doloroso em seu estômago assim que inalou o cheiro da vida de sua mãe. Ele podia escutar o coração de sua progenitora batendo cada vez mais lento.

Sr. Bardock desenterrou a adaga da garganta de Helena, impulsionou os braços para trás, suas mãos segurando o objeto com toda sede que havia dentro de si. Sede de justiça, sede de sangue, sede de Helena...

Afundou a lâmina na direção de seu peito e fez um buraco em seu coração que outrora estivera partido.

A vida da mulher saiu de suas veias esguichando pra cima com a pressão. Algumas cotas caíram no móvel de madeira escura e respigaram em Bartolomeu. Deixaram algumas gotas no chão que espirravam gotas menores sempre que caíam. Como acontece quando a chuva molha a terra.

Desta vez, a dor que o menino sentiu fez sua boca secar e o derrubou no chão fazendo a atenção de seu pai — ou não pai — se direcionar a ele.

"Minha barriga dói, papai."

O menino não entendia o que estava havendo, não entendia a dor na sua barriga ou o por quê de sua mamãe estar morta e seu pai tê-la matado por ela o ter traído ou nunca o amado. O garotinho sentiria falta de Helena mas a dor real de sua perda só seria sentida anos mais tarde quando ele não fosse tão inocente e pudesse entender sentimentos tão egoístas como a traição e tão complexos e destrutivos como o amor e o ódio.

Bartolomeu encarou o filho com um sorriso sádico e cruel, um olhar ansioso. Haviam respingos de sangue em seu rosto e na sua blusa. A língua passeou pelos lábios antes de falar.

"Isto é fome. Venha até aqui e alimentar-lo-ei."

Carmesim  [EM BREVE]Onde histórias criam vida. Descubra agora