"Título Pendente"Por: Nero Akuryoo

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Por: Nero (autor de Estrela Morta)

Comentário do autor: Como a pessoa que teve a ideia original para esse tema de histórias curtas, eu admito que me senti um pouco pressionado a fazer algo que ficasse acima da nota do aceitável. Tanto que essa história, que deveria ter sido focada em comédia, acabou tendo vária se várias alterações com cada vez que eu lia ela. No fim das contas, eu decidi fazer algo que refletisse essa trajetória. Mais do que isso, fica a seu cargo descobrir. Embora eu vá te dar uma única dica: não mude o formato.


          Pessoas tem a ilusão de que ser imortal significa ter uma vida interessante. Como se o simples fato de você parar de envelhecer significasse que, durante os séculos seguintes, você encontraria uma aventura atrás da outra como o protagonista de uma das várias histórias de aventura que se lê hoje em dia. Bem, a verdade é que o mundo é um lugar bem grande. E a maior parte dele é bem entediante.

           Minha própria história é uma delas. Obviamente o começo é um tanto promissor, afinal não é todo mundo que se torna um imortal. E não, você não nasce como um. Se esse fosse o caso, nós teríamos bebês imortais engatinhando por aí, levando famílias à falência com a quantidade de fraldas necessárias. Não, eu me tornei um imortal à moda antiga: comendo a carne de uma sereia. A parte de peixe, obviamente, a parte humana seria muito doce para poder cozinhar direito.

           Agora, antes que comecem a me julgar por isso, eu já vou dizendo que ela já estava morta há um tempo quando a achei na praia e eu estava preso naquela ilha deserta sem nenhuma comida de verdade há semanas. Só percebi a parte de cima depois de três porções do rabo.

           Acasos a parte, comer carne de uma sereia, como com certeza o senso comum diz, fez com que eu me tornasse imortal. Nada de envelhecer, eu sempre me curava das minhas doenças e por mais perto que eu chegasse da morte, acabaria me recuperando. Parece uma boa, mas depois de dois anos passando fome e bebendo água do mar você começa a desejar que morrer fosse uma opção. Mas não, foram dois anos conversando com meu próprio estômago e um longo período dessas conversas ocorrendo durante ataques de disenteria.

           Porém, quando eu finalmente fui resgatado, as coisas pareceram melhorar. Eu sábia que teria todo o tempo do mundo para fazer o que quisesse! Viajar o mundo! Abrir um negócio! Escrever um livro! Tempo não era um problema então nada mais seria! E realmente os meus primeiros anos foram os mais produtivos. Eu até comecei a escrever um livro. Mas eu só percebi muito tarde o outro lado da moeda.

           Quando o tempo não era mais um problema você começa a desvalorizar ele. O que é um mês para um imortal? Um ano? Dez anos? Aliás, qualquer medida de tempo? Quando eu finalmente terminei o primeiro capítulo, já havia se passando cento e vinte anos e todo o conteúdo não era mais atual!

           Sem escolha, a única coisa que pude fazer foi recomeçar. Mas desta vez as coisas seriam diferentes. Eu viajaria o mundo, veria coisas novas, me manteria em movimento. E então percebi que durante cento e vinte anos, eu não havia feito uma moeda sequer. E a realização de que eu estava completamente pobre veio à tona.

           Mesmo assim, saí para ver o mundo. Mesmo sem dinheiro, meus pés poderiam me levar para ver o mundo! Foi aí que as coisas começaram a dar errado de verdade. Eu queria ver o mundo ao leste, então andei para o leste. Porém, quando finalmente havia deixado o meu mundo para trás, lembrei de que havia esquecido meu caderno em casa.

           Depois de voltar até lá, descobri que o lugar havia sido revendido para outra família, pois, aparentemente, você não pode deixar sua casa vazia por quarenta anos, vem um espertinho querer virar o dono dela. Então fiz a coisa sensata: roubei o máximo que pude dela, comprei um caderno novo e embarquei em um navio para o Egito.

           Havia um rumor que grandes construções estavam sendo erguidas naquela região, mas então eu descobri que o Egito não ficava nas Índias e que estava no navio errado. Sem ter o dinheiro para pagar a passagem de volta, resolvi seguir o caminho andando, mas quando finalmente cheguei, as tais construções já haviam sido terminadas. Considerando que eram apenas uns triângulos grandes, aquele negócio todo havia sido bem exagerado.

           Mas perder um evento histórico não era nada demais. Eu era imortal. Poderia ver o que quisesse! E então eu segui para o sul. E pelos próximos cem anos tudo que eu vi havia sido mato. E animais. Tantos animais. Todos querendo me comer. Mais de uma vez cheguei perto de descobrir se engolir um imortal causaria uma má digestão neles.

           Quando finalmente encontrei outra civilização digna de nota, consegui comprar uma passagem para outro porto em troca de serviços apontando locais de importância na mata. Bem, pelo menos eu achava que eram locais de importância, mato era tudo igual para mim, mas a intenção é o que vale.

           Naquela época vários movimentos artísticos haviam começado na minha terra natal, então decidi seguir de volta para lá. Meu primeiro contato foi com os boêmios, e também meu último. Quando eu finalmente acordei da ressaca da cerveja, já haviam se passado duzentos anos. E enquanto verificava meus pertences, percebi que meu caderno, que havia comprado apenas alguns séculos atrás, havia sumido sem eu escrever sequer uma palavra nele!

           Me sentido péssimo comigo mesmo decidi que dessa vez seria diferente, mas diferente mesmo! Sem mais escrever sobre temas atuais ou sobre lugares exóticos. O tempo urgia e tudo que eu precisava esteve comigo o tempo todo: eu.

           Obviamente, a história de vida de um imortal deveria dar para uma história e tanto! Tanto tempo de vida, tantos encontros! Sem delongas eu comecei a trabalhar e quando estava na metade do caderno novo havia percebido que a maior parte de meu tempo havia sido gasto sozinho. Fosse andando, naufragado ou simplesmente trancado dentro de casa.

           Isso não serviria. Até eu precisava admitir que meus pensamentos não eram tão interessantes assim para segurarem um leitor por mais do que algumas páginas. Precisaria de algo mais emocionante! Falas engraçadas, perdas tocantes, tragédia, comédia, tragicomédia! Talvez um pouco de erótica. O fato era: precisava de uma vida mais emocionante. E então, após alguns poucos anos, parti para o novo mundo no oeste.

           E então a minha vida começou de verdade. Trabalhando duro, com apenas alguns anos de descanso entre os meus turnos, eu conheci várias pessoas interessantes. Os Smith ainda possuem um lugar em especial em meu coração, mesmo depois de o bisneto de meu companheiro ter se esquecido que o senhor Smith havia me convidado para jantar com eles.

           Naquele tempo, a minha biografia fluía para as páginas como o vento. Quase como se cada página tivesse sido feita para receber um dia de minha tão maravilhosa vida. E quando eu finalmente estava fazendo progresso, percebi que ela havia transformando ela em um diário.

           Minha fúria durou séculos, rasgando as páginas de novo e de novo até que eu não pudesse mais sequer segurar os pedaços. Há quanto tempo eu estava no ramo de escritor? Mesmo que não tivesse publicado um livro sequer, tinha quase um milênio de experiência escrevendo. Por que era tão difícil escrever alguma coisa? Principalmente quando ela era sobre mim!

           Desacreditado com minhas próprias capacidades, eu decidi acessar a internet, tentar me distrair depois de tanto tempo queimando minha cabeça com meu livro. Eu já havia esperado até ali, só mais um pouco não faria mal. Enquanto descansava pensei em como essas três fases da minha vida haviam se passado. Refletindo sobre elas, bem como meu trabalho no livro, apenas uma resposta me veio: eu deveria gostar mais de carne doce.

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