QUANTO MAIS GRACINHA EU FAÇO, MAS QUEBRADO ESTOU

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Por volta das 15:21, Gabriel Florêncio e os amigos deixam os corredores do colégio e caminham por uma rua e meia até chegarem na praça central de São Sebastião. Os quatro atravessam a praça que os leva até o brechó da Verônica, uma colega de classe que cuida dos negócios da avó adotiva.
— O que estamos fazendo aqui, meu bem? — Pergunta Alfredo, olhando em volta.
— A única roupa usada que o Lucas usa é as do Alfredo quando transam. — Gabriel acha graça das reações dos amigos.
— Vocês já transaram? — Manu fica em choque e se sente decepcionada. — Que palhaçada!
— É brincadeira, Lucas e Alfredo disputam pra saber quem faz mais doce.
Manu fica desconfiada mas sabe que não é possível algo ter acontecido entre os meninos. Ela sabe como funciona a tortura feita por Lucas.
Depois do susto ser deixado de lado, os pontos de interrogação voltam a surgir na cabeça de Gabriel, Manu e Alfredo. Lucas também parecia inquieto e o sol quente sobre suas cabeças não ajudava. A senhorinha, dona do brechó os assistia de dentro da loja. O desconforto dos alunos era nítido, as bolsas com cadernos e livros pareciam pesar e ninguém entendia o motivo de estarem parados ali. Lucas se manteve calado até avistar sua nova melhor amiga.
— Não acredito que fez eu esperar. — Lucas não fez questão de parecer agradável com seu tom de voz. O garoto respira fundo e vira-se para os demais. — Eu meio que fiquei de mostrar lugares "legais" pra se comprar roupas. — Ao notar o que acabou de dizer, Lucas pareceu enjoado e arrependido.
Gabriel e os outros parecem decepcionados. Estavam exaustos. Alfredo e Manu soltam um oi desanimado.
— Quando que vocês conversaram? — Alfredo parecia confuso.
— Eu por acaso estou morando no apartamento ao lado do Lucas. — Diz Gabi e acontece um momento de silêncio. — Eu e a minha mãe fomos jantar na casa do prefeito. — A garota parecia em envergonhada com as próprias palavras.
— O Samuel dando jantares? — Manuela olha torto para o menino Dias. — Seu pai tá saindo com a mãe da Gabi?
— Claro que não, meu pai não é maluco. — Lucas se sente ofendido e puxa Alfredo pelo o braço para entrarem no brechó Sol e Lua. Os demais entram revirando os olhos e bufando.
O lado de dentro dava uma sensação de claustrofobia mesmo com a ótima organização e decoração. Gabriel olhou a sessão de sapatos usados, talvez devesse voltar sozinho um outro dia. O garoto sabe que seus amigos não entendem o sentimento de contar dinheiro escondido na esperança de ter o suficiente para fazer tal compra. O lado bom é que nunca foi feito de chacota por não ter dinheiro. Se em casa o menino Florêncio não é respeitado, com os amigos que conhece desde as fraldas, nunca houve desconforto.
Gabriel já tentou pedi ajuda aos amigos sobre os abusos cometidos por seu padrasto. O menino já tentou conversar pessoalmente, por mensagem e a última vez escreveu uma carta enquanto sentia dor e sangrava. Florêncio não lembra exatamente de quando sua mãe se afundou na depressão e casou-se pela a primeira vez. A senhora achava que tinha achado o seu próprio príncipe encantado. Quando tudo se perdeu? Talvez depois que seu irmão Vitor se alistou no exército ao completar dezoito anos. Vitor nunca voltou pra casa, mas sempre ligar nos aniversários e no natal.
Gabriel sempre mente nas ligações. A primeira vez foi cruel demais consigo mesmo. Seu coração sangrava de saudade. Viver em uma casa sem seu fiel irmão mais velho era demais para um menino de sete anos.
— Você tem muitos amigos, irmão? — O menino brinca com o fio do telefone preso na parede da cozinha.
— Ainda não, o pessoal daqui é bem casca grossa, não sei se querem ser meu amigo. — Vitor diz do outro lado da linha.
— Você ainda vai gostar de mim quando fizer amigos ou vai me esquecer aqui longe de você? — O pequeno Gabriel estava fragilizado, seu peito descobriu a dor e nunca mais parou.
— Está tudo bem aí? Se não, eu volto agora.
— tô bem e tá tudo bem. — Mentir se tornou fácil com o passar do tempo. E foi assim a cada ligação.
Florêncio sai dos seus pensamentos quando o celular em seu bolso vibra. Café. Hora de trabalhar. Seu alarme é sempre pontual.
— Pessoal, preciso ir. — O garoto vai até a frente do brechó.
— Eu vou embora também, talvez eu venha aqui outro dia. — Diz Gabriela, conferindo o horário seu celular.
— Achei que tivesse gostado da blusa amarela. — Manu aponta pra um manequim.
— Eu não tinha planos de fazer compras depois da escola, seu amigo marcou de última hora. — Gabi responde com ironia olhando para Lucas que tinha acabado de fazer Alfredo segurar sua bolsa.
— Se o problema é dinheiro, eu pago.
— E depois o quê? — A novata parece ofendido com a proposta de Lucas. — Vamos ser melhores amigos? Não vou ser a garota nova que entra pra um grupo de bestas e vira alvo em uma investigação policial. — Ela faz uma pausa brutal. — Já vi esse filme antes.
Todos ficam em silêncio e em choque.
— Beleza garota nova, se você é uma frustada que não aceita que pessoas possam ser legais com você, vá à merda. — Gabriel cansado de drama vai embora.

                                            ......
Ao terminar de vestir o uniforme da cafeteria Doce Coração, Gabriel deixa o banheiro de funcionários já para limpar mesas e recolher sujeira. O trabalho é bom, é tranquilo. Os proprietários são um casal de idosos que moram no andar superior do estabelecimento. E diferente de muitos que vivem em São Sebastião, dona Ana e o esposo são ricos de verdade. A Doce Coração vive em cada estado do Brasil. O casal gosta de viver em paz, com pouco. As duas filhas mais velhas cuidam dos negócios jurídicos e o caçula é funcionário com a mesma importância de Gabriel. Dona Ana e o marido adoram o Florêncio, são justos e amorosos com o garoto. O caçula é tímido, um menino de poucas palavras.
A cafeteria estava calma e sem muitas mesas pra limpar. Os biscoitos acabaram de sair do forno e a maquina de café recém trocada. O ar-condicionado ficava em temperatura ambiente, mas Gabriel suava com farda polo laranja e o avental azul escuro preso em seu corpo.
Com tempo livre, Gabriel se pergunta se foi grosseiro com a menina nova. Talvez tenha sido, mas o estrelismo lhe tirou a paciência. A garota conseguiu ser mais metida do que muitos moradores de São Sebastião, que por si só, já são uns idiotas natos.
E apesar de ter ótimos chefes, e ganhar bem para limpar mesas, anotar pedidos e se queimar com a máquina de café, Florêncio tem um treino diário de paciência. Os clientes são velhos e metidos. As pessoas são exigentes quando na verdade são uns falidos. Poucos tem dinheiro de verdade, mas ocupam a cafeteria como se estivessem em um escritório importante. Trabalhar com atendimento ao público demanda paciência e saúde mental.
Os altos falantes do Doce Coração toca a mesma playlist todos os dias. O celular do Gabriel fica ligado por bluetooth o tempo todo enquanto trabalha. Sua playlist se chama chorar um pouco, né meu filho... Fofo.
— Lindinho, oi, um café com leite, por favor. — Diz uma garota, que bate com força a porta da cafeteria.
Os clientes ficam incomodados e reviram os olhos, outros apenas xingam baixo.
— Qual tamanho você quer? Pequeno, médio ou grande? — Pergunta Gabriel, largando o celular sobre o balcão.
A menina olha para o armário atrás do garoto e analisa os copos de papel. Pela a demora eu diria que ela é libriana.
— Acho melhor um suco de maracujá, hoje tá quente, né?
Florêncio analisa a menina a sua frente e a reconhece, é a Verônica Machado, ela é do terceiro ano também. A morena cuida do brechó da avó quando não está no colégio.
— Você foi no Sol e Lua hoje, certo? — Continua Verônica, segurando uma carteira que lembra uma bolsa de tão grande.
— Sol e Lua? É um código pra venda de drogas? — Gabriel acha graça e aponta para os copos de papel no armário. — Não respondeu a minha pergunta sobre o tamanho do copo.
— Pode ser um grande. — A menina pareceu envergonhada. Não sei se sua pele ficou rosa pela a resposta de Gabriel ou se já estava pelo o calor infernal daquele fim de tarde. — Sol e Lua, o brechó.
— Ah, eu fui com uns amigos.
Florêncio pega o copo grande e vai até a máquina de suco.
— Eu tomo conta do negócio, minha vó não tem mais paciência, mas enquanto estou na escola, ela cuida das coisas. — Verônica vê o seu copo ser enchido com um simples apertar de um botão. — É mais uma desculpa pra saber da vida alheia.
Gabriel desliga a máquina e tampa o copo, depois entrega um canudo de papel a Verônica.
— Não quero ser rude mas, qual é dessa história? — O garoto registra o pedido no caixa. — Dez reais.
— Minha vó mandou uma foto de vocês conversando em frente ao brechó, eu precisei ficar um pouco mais depois da aula. — A menina tira uma nota de dez reais da sua grande carteira de zíper e entrega ao menino a sua frente. — A vovó disse que tinha uns rebeldes gritando, fazendo show.
— Ela é sempre exagerada? — Gabriel se assusta com suas próprias palavras, acha que foi longe demais. Verônica ficou visivelmente surpresa. — Desculpa.
O garoto olha para o fundo da cafeteria e vê o filho dos seus chefes. O caçula do casal apesar de quieto, vive falando com alguém no celular.
— Eu acho que vou querer dois pedaços de bolo de ninho. — Verônica parecia uma criança olhando apaixonada para a vitrine de bolos.
Gabriel pisca algumas vezes e procura a garota atrás do balcão, que se agachou para olhar os bolos. Florêncio sorri e lembra de namorar os doces ao lado do seu irmão mais velho, que costumava ser o seu ponto de segurança.

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