Lembrar da minha infância sempre seria muito fácil, as lembranças costumavam aparecer involuntariamente como um tipo de morfina espiritual; nem sempre funcionava, no entanto. Crescer sozinha em um bairro de imigrantes não foi a tarefa mais fácil do mundo para uma criança desajeitada como eu, ser o motivo de piadas dos colegas de escola sempre que tropeçava ou deixava algo cair me privou de uma infância normal, como qualquer criança deveria ter; na época, eu não entendia o porquê das risadas maldosas, mas hoje vejo que crianças podem tão cruéis quanto adultos sem a devida educação. Foi sorte ter encontrado Dinah, e alguns anos mais tarde, Lauren: elas se tornaram minhas protetoras quando se tratava das outras crianças. Dinah costumava ser a aventureira do nosso trio, ela gostava de contar histórias de terror e se aproveitar da minha inocência para me assustar. Sua história preferida era a do Hallowen, ela dizia que, toda noite de Hallowen, as portas do inferno se abriam às nove da noite para que os demônios circulassem entre nós escolhendo crianças para levarem à um lugar onde crianças desobedientes ficavam trancadas em seus piores pesadelos. Horrível, eu sei, mas Dinah sempre teve uma imaginação fértil e sombria quando se tratava de inventar histórias macabras.
Ainda lembro do Hallowen de 2001, era uma noite calorenta, típica de Miami; Dinah e Lauren batiam insistentes na porta da frente com seus pequenos cestos enquanto minha mãe arrumava a gola da minha fantasia de Wandinha Addams. Não era a melhor fantasia do bairro porque meu pai havia esquecido de ir até a loja de fantasias e minha mãe precisou se virar com o que tinha, mas para uma criança de 9 anos, a simplicidade daquela roupa era mais que o suficiente para se ganhar a noite.
"Não deixe que os monstros te peguem." a filmagem que papai fazia mostrava audivelmente que ele estava sorrindo ao me entregar o pequeno caldeirão preto carvão usado ano passado para recolher os doces.
Sorri de volta para a câmera e abri a porta sendo recebida por Dinah fantasiada de Batgirl e Lauren de Jill Valentine dos jogos Resident Evil. Elas pularam ao meu redor — não sem antes se exibirem para a câmera do meu pai —, e me arrastaram pela rua enfeitada com abóboras, velas, enfeites de morcegos, vampiros pendurados pelas causa, e, é claro, inúmeras crianças fantasiadas batendo de porta em porta em busca de seus doces. Nós conseguimos muitas guloseimas naquela noite, Dinah roubou algumas de um grupo de crianças e Lauren e eu ficamos em nossa bolha de costume, trocando algumas balas e comendo juntas no meio fio da rua de casa.
Foi perto das nove da noite que tudo aconteceu; uma das piores lembranças daquela época. Um grupo de garotos estourou algumas bombas bem próximo de nós com o intuito de pregar uma peça nas crianças da rua. O susto fez com que o meu coração saltasse no peito causando paralisia temporária no meu corpo e me fazendo cair de joelhos no asfalto áspero enquanto todos corriam — todos exceto Lauren. Ela me ajudou a levantar e nós corremos juntas em disparada de volta para as nossas casas, não sei descrever ao certo o pânico que senti naquele momento, mas o fato de ser nove horas foi o fator estressante que provocou o pânico dentro de mim. Não me levem à mal, eu era uma criança ingênua que acreditava em tudo que diziam, até mesmo em demônios sequestradores de crianças.
Não lembro exatamente como me separei de Lauren, meus joelhos estavam ensanguentados e tudo o que se passava pela minha cabeça era que os demônios estavam saindo do inferno para me buscar; eu nunca mais veria meus pais, Dinah ou Lauren outra vez. Àquela altura, até mesmo as crianças fantasiadas contribuíram para o meu pânico, fazendo meu coração saltar cada vez que encontrava alguma delas pela rua enquanto corria sozinha esperando que algum demônio não estivesse mais atrás de mim.
Você pode estar se perguntando como uma criança pode ser tão dramática imaginando demônios e tendo pânico por bombas, mas experimente ser uma criança solitária e influenciável que acredita em tudo que lhe dizem.

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Romance"Minha inocência permitira naquele momento que eu ficasse petrificada por breves segundos, admirando as pedras preciosas que Lauren carregava em seus olhos. Foi o primeiro contato de nossos olhos, mas a pequena garota desastrada dentro de mim teve a...