Ele tinha razão. Fazia muito tempo. A última vez havia sido num quarto de hospital, aliás.

– O Joel ...?

Do outro lado da cidade, Renan deu uma risada sarcástica.

Não acredito que você vai concordar em sair de casa pra ver o Joel e não a mim. Mas tudo bem! Eu sei reconhecer a derrota! – antes que eu pudesse contestar, ele bateu o martelo: – Em meia hora o carro estará na entrada principal do seu condomínio. Esteja lá.

E desligou.

***

Nós fomos ao shopping em vez de ficar em casa porque o Joel realmente confirmou que daria uma saída. Mas Renan não deixou a ideia do sorvete de lado, então foi a primeira coisa que fizemos. Um déjà-vu esquisito me pegou de surpresa... Parecia que estávamos repetindo o ano anterior, quando nos encontramos antes da volta às aulas, todo mundo do time de futebol... Mas é claro que não seria mais assim. As circunstâncias eram completamente diferentes.

Renan pagou uma casquinha de chocolate pra mim e pegou outra transbordando de guloseimas: balinhas, amendoins, granulados diversos e marshmellows. Nos sentamos na praça de alimentação para que a cobertura do seu sorvete pudesse ser apreciada sem moderação.

– Acho que já engordei uns cinco quilos. – ele anunciou sem, entretanto, parar de comer o doce. Levantei uma sobrancelha e ele revirou os olhos. – Só fico em casa, deitado, ouvindo música e jogando e comendo o dia todo...

– Você está entediado.

Muito. Ao extremo.

– Cuidado pra não perder o ritmo. As aulas estão logo aí... – eu ri.

E era verdade. Já estávamos saindo da penúltima semana de Janeiro. Dali dez dias e voltaríamos à rotina do ensino médio.

Assim que a constatação veio, percebi a tortura dessa bomba relógio fazendo tic-tac no meu cérebro.

– Não sei se volto pro time. – Renan me puxou pra realidade, encolhendo os ombros, mas sem me fitar. – Não tem a menor graça mais.

– Você foi o único atacante que sobrou. O Nasser vai arrancar os cabelos.

Nós fazíamos parte do time de futebol do nosso colégio desde... sempre, eu acho, mas muitas coisas tendiam a se alterar naquele ano. Principalmente porque o outro atacante do time oficial estava testando gramados novos do outro lado do mundo, lá na Austrália, num intercâmbio que fazia.

– Bem, Nasser terá que achar substitutos pros gêmeos de qualquer maneira. Não vai ser tão difícil assim fazer uma seleção para mais um integrante...

Parei de beliscar o sorvete e o encarei. O futebol era a base do Renan, eu tinha consciência disso. Se ele estava disposto a larga-lo, significava muito... Talvez mais do que eu conseguisse enxergar naquele momento, porque a única coisa que comentei foi que precisávamos pensar sobre aquela decisão em conjunto com o treinador e, talvez, com o resto do time. Mesmo que não nos importássemos mais tanto assim com a opinião deles. De todos eles.

Joel apareceu quando estávamos terminando o sorvete. Nós o vimos de longe porque era a única pessoa sendo empurrada numa cadeira de rodas. Não esperamos que ele fosse o centro das atenções da praça de alimentação e nos apressamos para encontra-lo no meio do caminho. A mãe do Joel nos cumprimentou com alegria e, alguns minutos depois, vencida pela insistência do filho, nos deixou a sós. Sem pestanejar, Renan naturalmente se apossou da cadeira, deu meia volta e começou a guiar o Joel para o outro lado do shopping.

Conversamos trivialidades, rimos de algumas bobagens e fizemos piada com o que não deveríamos – como, por exemplo, as meninas mais novas babando pelos caras mais velhos que circulavam por ali. Inclusive nós dois. Ou três, não tenho certeza se a cadeira espantava as garotas.

Joel estava muito bem; me surpreendi de constatar que até pouco mais de um mês atrás ele se encontrava deitado num leito de hospital, se recuperando de um coma alcóolico e do ano completamente ferrado que tivemos. Ele contou que as seções de fisioterapia tinham se intensificado agora nas férias, porque ele queria voltar andando para o colégio. Por ser jovem, seus músculos lhe obedeciam bem, e a dieta da nutricionista fazia com que seus quilos a mais estivessem sumindo aos poucos sem deixar papadas à mostra. Uma sorte que nem todos podiam ter, essa capacidade elástica... Joel sempre foi o mais cheinho de nós, mas vira e mexe ganhava músculos, perdia, engordava...

Foi mais ou menos nessa hora, no meio das piadas sem graça do Renan sobre pele sobrando, que nosso ex-goleiro pigarreou e mandou:

– Infelizmente acho que vocês não verão minha entrada triunfal no último ano do ensino médio. – nós nos entreolhamos e o Renan tomou coragem pra perguntar o motivo. Joel coçou a nuca, sem graça. – Meus pais resolveram me tirar do colégio...

– O quê?! Como assim? – esbaforido, Renan deu a volta na cadeira e parou na frente dele. Eu só pisquei e o Joel balançou a cabeça, fitando o chão.

– Eles disseram que a escola foi "conivente com o caso", cê sabe, o que aconteceu na viagem... Minha mãe disse até que queria processá-los, mas sei lá, acho que desistiu. O remédio foi me matricular em uma que seja mais perto de casa e que tenha acesso para a cadeira, caso eu precise dela, sabe como é...

O colégio realmente não tinha acesso algum para deficientes. Só os três lances de escada que precisaríamos subir para chegar ao terceiro andar esse ano matariam as pernas fracas do Joel...

E os pais dele tinham certa razão, mas fiquei imaginando se o Nasser, nosso treinador, teria sido "culpado" por tudo isso. Afinal de contas, ele era o professor responsável na viagem em que o Joel passou mal. A viagem que era pra ser só nossa vitória no campeonato intermunicipal de futebol, mas que acabou sendo aquela em que nos embebedamos tanto que nosso goleiro entrou em coma. E nada mais foi a mesma coisa.

Permanecemos o resto da tarde esmiuçando os detalhes daquela mudança brusca. Era mais uma pessoa com quem eu não poderia, sei lá, contar para alguma coisa. Não que eu estivesse com esperanças – só Deus sabe o quanto eu já apanhei por confiar demais, então não é como se fosse realmente me apoiar nisso. Mas o Joel era um amigo. E perder a companhia dele me ressentia.

Nos despedimos por volta das sete da noite, já que insisti em voltar de ônibus pra casa. Os pais do Joel levaram-no embora e o Renan andou comigo até o ponto da pracinha, entre o colégio, o shopping e a casa dele. Fomos em silêncio, mas quando me sentei para esperar o transporte, ele parou na minha frente e suspirou.

– Acho que seremos só nós dois esse ano...

A declaração tinha um misto de melancolia com desespero, não sei explicar. Combinava com a sensação que gerou no meu interior e que ficou instalada lá durante todo o percurso de uma hora que meu ônibus levou para chegar ao condomínio. E perdurou por mais tempo, mesmo depois do meu banho, mesmo depois do jantar, mesmo depois de ouvir meu pai reclamando de alguma coisa... Mesmo assim, aquele nó não se desatou.

Meu ano parecia enforcado nele, e olha que aindanão tínhamos passado nem do primeiro mês. 


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