19. Dilema

69 3 0
                                    


Já passavam das oito da noite quando chego a Couce. Estaciono o carro na estrada principal, trago a mala e uns metros mais à frente avisto o pequeno portão da casa, feito em tiras de madeira castanha, orgulhosamente executado pelo José. Desço as escadas em cimento ladeadas de vasos com orquídeas. A casa da minha avó foi renovada à cerca de cinco anos, foi toda ela preenchida em madeira e cimento e a parte das traseiras pintada em amarelo pálido. Contudo, ainda mantém a fachada original, feita em pedras de xisto, característico do lugar. Não tem campainha, ela diz que não é necessário numa aldeia tão pequena.

"É muito mais fácil berrar uns pelos outros do quintal filha!" Defendia quando lhe pedia para colocar, pois as todas casas das minhas colegas de escola tinham.

— Avó! – Ouço mexer dentro da casa ao chamar uma segunda vez e passado um minuto a porta abre-se. Devia estar na cama e vestiu à pressa um robe grosso azul por cima do pijama.

— Mia, meu amor que boa surpresa! – Abraço-a com força e desfaço-me em lágrimas e soluços ao sentir os seus braços à minha volta. – Shhh! Anda para dentro, está frio cá fora!

O José aparece pouco depois também de robe. Ia cumprimentar-me mas ao ver-me a chorar hesitou.

— Volta para a cama Zé, amanhã falas com a Mia. – Manda num tom carinhoso. Ele assente com a cabeça. Acho que o José entende que preciso de conversar a sós com a minha vovó.

Até aos doze anos fomos só eu e a vovó! Nos meses em que os meus pais estavam em Portugal, continuava a fazer questão de me levar e trazer da escola. Era a nossa rotina! De manhã narrava histórias sobre como tudo era diferente no seu tempo, quando tinha a minha idade. A vida, a escola, a terra... E de tarde era a vez de ela me ouvir a contar as peripécias que aconteceram durante o dia de aulas!

Duas vezes por semana ia lá à aldeia a carrinha da mercearia fazer venda ambulante. Nessas visitas conseguia juntar quase todos os habitantes de Couce à sua volta. Lembro-me que eram momentos sociais e de convívio, e se tivesse bom tempo, podiam mesmo estender-se durante horas!

A certa altura comecei a reparar na avó, sempre tão prática e sem vaidades, mudava completamente no instante que ouvia o buzinar da carrinha! Apressava-se a tirar o avental e ia ao espelho pentear os cabelos compridos loiros acinzentados enrolando-os num puxo prendido com travessões. Segundas e quintas-feiras andava mais bem vestida, melhor arranjada, chegou mesmo a pôr batom nos lábios...

Até que um dia o senhor José, o merceeiro da carinha ambulante veio jantar lá a casa connosco. Trouxe-me o meu primeiro livro da colecção Triângulo Jota como presente. Contou-me que ele e a minha avó haviam sido colegas na escola primária, mas depois partiu para Angola com os pais. Reencontraram-se cerca de quarenta anos mais tarde, ela viúva, ele separado e ambos reconheceram o primeiro amor.

— Deves estar com fome filha! – Leva-me até a cozinha — Vá senta-te à mesa. Vou buscar-te sopa que sobrou do jantar. A panela ainda deve estar quente! – Puxa a cadeira e faço-lhe a vontade.

Não acho que tenha vontade de comer, no entanto a sopa da vovó é uma das melhores recordações da minha infância. Leva batata e massa, feijão vermelho e repolho. Não há nada mais aconchegante!

Serve-me a malga cheia com um pouco de broa escura ao lado. Chega-me o cheirinho da comida e reparo que estou esfomeada!

Ela senta-se também à mesa, á minha frente.

— Que se passa minha querida? A escola não está a correr bem? Ontem senti-te triste. – Olha-me com compaixão. Acabo a ultima colherada e afasto a malga.

Até Que o Sol Nasça Para TodosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora