Capítulo I- Parte V

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Fiquei encarando o espelho. Aquela criatura delicada e brilhante, com os cabelos sedosos e bem escovados arrumados em um coque lateral despojado não se parecia comigo. Olhei para minha manicure bem feita e para o vestido em cima da cama, para as argolas delicadas em minhas orelhas e fiquei encarando a lingerie branca por um longo tempo. 
- Eu não estou pronta! 
Lorena suspirou e veio ao meu encontro. Ficou me encarando através do espelho, parada ao meu lado. 
- Você esta. Se não se der a oportunidade, quando é que esses fantasmas deixarão de te assombrar? 
- Este fantasma é minha mãe, Lô. 
Ela suspirou, cansada. 
- Eu sei querida. Eu sei... Mas hoje, você é apenas uma mulher linda, que vai encontrar um homem muito gato, vai se divertir e dar muitas risadas, não uma pessoa vivendo um luto eterno. - Revirei os olhos - Qual é... o máximo que pode acontecer é que fora do torpor matinal ele não seja tão atraente, dai você da um fora nele e volta pra sua depressão, só isso. 
- Eu duvido. Javier parece ser o tipo, que mesmo insana eu acharia atraente, que dirá sem sono. 
Rimos juntas. 
- Vista-se! 
Peguei o vestido branco sobre a cama e me enfiei nele. Um tubinho, lindo, mas com um decote generoso nas costas que me fez olhar para Lorena outra vez indecisa. 
- Você esta linda! 
- Eu não sou tão ousada quanto este decote me faz parecer. 
Ela sorriu pra mim, um sorriso diabólico. 
- Meu anjo, você é sim! Agora coloca logo esse sapato e se manda! 

Minhas mãos estão suadas quando entrego as chaves do carro ao valet, na porta do hotel onde marcamos. Um atencioso funcionário abre a porta com um cumprimento discreto e eu me dirijo à porta lateral que da acesso ao restaurante. Luxo é a palavra que define o ambiente e eu me sinto levemente desconfortável assim que percebo que estou no restaurante mais caro de São Paulo. Um jantar aqui é uma pequena fortuna!
Ao passar pela porta, ouço uma música alegre vinda do piano e um funcionário trajado impecavelmente com um terno escuro e gravata borboleta, muito sorridente se aproxima. 

- Boa noite senhora. 
- Boa noite, a reserva esta em nome do Sr. Javier  Gonzáles. 
Ele me olhou com um brilho de reconhecimento no olhar. 
- Claro, venha comigo por favor. 

Caminho tentando parecer calma e confiante, mas ao notar uma mesa posicionada num canto discreto do luxuoso salão e perceber que Javier já se encontrava nela, meu estômago se contraiu em ansiedade. Ao notar nossa aproximação, ele se levantou e agradeceu ao garçom, solicitando que se retirasse. 
Nos olhamos por alguns segundos, e então ele se aproximou, seus olhos brilhando como um oceano profundo, me desconcertando, me fazendo esquecer como respirar. 
- Estou atrasada? 
- Você esta linda!
Javier se aproximou um pouco mais, bem devagar, por um minuto suspendo a respiração porque acho que ele vai tomar meus lábios ali mesmo, mas ele recua alguns centímetros quando esta muito perto dos meus lábios e me beija na face. Suspiro baixinho em um misto de êxtase e decepção e minha mão toca seu braço enquanto eu o aperto levemente. Foi um reflexo, mas me senti exposta naquele mínimo gesto. Javier puxa a cadeira para que eu me sente e se acomoda a minha frente. Fico observando a luz suave, a música, o homem misterioso e muito calado à minha frente e arrisco iniciar a conversa para dissipar a densa camada de sensualidade entre nós. 
- Estamos fadados a deixar um ao outro sem respostas? 

Ele sorriu encabulado. 
- Desculpe. Você não se atrasou. Eu cheguei mais cedo, estava ansioso - Meus lábios se abriram num pequeno "oh", mas não consegui emitir nenhum som. - Estou calado porque estou olhando para você. Estou aturdido e poderia fazer isso a noite inteira sem dizer uma palavra porque você é... incrível.  
Abaixei os olhos para os talheres de prata, harmoniosamente dispostos depois olhei novamente para ele e sorri, sem saber como responder. 
- Obrigada. 
Ele se recostou à cadeira e tomou um gole do liquido claro em sua taça. 
- Tomei a liberdade de pedir um vinho. Espero que não se importe. Você bebe? 
- Sim, por favor. 
Ele tomou a garrafa na mão, enquanto segurei minha taça. Quando o garçom fez menção de se aproximar ele o dispensou com um gesto educado, e me serviu, segurando minha mão entre a sua e a taça com elegância, meu corpo se arrepiando ao contato. Degustei sem pressa, o que com certeza era a melhor bebida que eu tomava em muito tempo. 
- É alemão, de *Mosel
- Eles fazem os melhores *Rieslings do mundo. 
- A moça entende de vinhos. 
- Só dos bons. 
Ele sorriu. 
- Sou dono de uma vinícola na Argentina - Eu o olhei espantada pela revelação - meu pai tinha uma grande paixão pela produção artesanal de vinhos. Pouco antes de morrer, tornou-se dono de uma vinícola Argentina, onde tenho me esforçado para produzir Malbec's que valham o legado. 
- Deu continuidade ao sonho de seu pai? 
- Se tornou um dos meus sonhos também, e cada vez que vou até lá, é como se pudesse vê-lo caminhando entre as parreiras e os barris. Vou levar você até lá, em breve. 
O encarei surpresa. 
- Você mal me conhece e já esta fazendo planos de viajar comigo? 
- Dizem que só se conhece bem uma pessoa quando se viaja com ela.
- Vá devagar comigo, Sr. Gonzáles. 
Seu olhar escureceu e eu percebi algo, como se ele travasse uma batalha consigo mesmo. Após alguns segundos me encarando em silêncio, ele falou com voz profunda e calma;
- Eu não saio com ninguém há um longo tempo, Ana. Não costumo desperdiçar tempo com o que me parece superficial. Se eu quisesse você apenas para um jantar e uma transa, você já saberia. Por isso, não se surpreenda com meus planos porque embora não sejam muito apropriados, eu já me peguei fazendo muitos outros com você. 

Eu poderia me sentir ofendida pela rudeza contida na resposta, mas ao contrário disso, me senti privilegiada, desejada e um tanto assustada. Javier era um homem direto. Sobre isso não haviam dúvidas.
- Você me intimida.
Ele piscou e afastou o corpo um pouco mais. Droga!
- Me perdoe. Nem pedimos a entrada e eu já estou intimidando você. Eu tento deixar esse hábito para os negócios, mas nem sempre sou capaz. 
Ele sorriu, um pouco sem graça e o arrependimento me invadiu no mesmo instante.
- Javier, eu estou sozinha há muito tempo. Para ser franca, tempo demais. E acabei me esquecendo como tudo isso funciona. Eu sou muito boa em falar com as pessoas, mas quando de trata de me relacionar profundamente, eu estou um desastre, então não se ofenda, por favor.
- "Esta"?
- O que?
- Você disse "estou" um desastre. Normalmente as pessoas dizem "Eu sou", então... Porque? - Eu tentei sorrir, mas acho que o que saiu foi algo mais parecido com uma careta e então, surpreendentemente ele segurou minha mão e mudou o rumo dessa conversa que certamente terminaria em lágrimas - Estou faminto. Gosta de *foie gras?
Olhei para ele.
- Prefiro deixar as iguarias de aves maltratadas fora do meu prato.
Ele riu, bem humorado.
- Eles servem um salmão excelente.  

O jantar foi uma sucessão de pratos finos,  entrada, prato principal, sobremesa, tudo muito saboroso e servido com muita elegância. Durante todo o tempo, a despeito do início da noite, Javier procurou manter uma conversa leve e agradável e se mostrou um homem charmoso e muito inteligente. O diálogo fluía fácil, e mesmo temendo estragar o clima em algum momento com meus conflitos interiores, eu estava me divertindo muito. Há anos não saia com alguém que realmente me fizesse esquecer todo o resto, e naquele momento, eu percebi que estava muito mais atraída por ele do que imaginei com todos aqueles encontros pela manhã.  Até apostei com Lorena antes de sair, que ele era apenas mais um rostinho bonito, quando na verdade o homem parecia ser um prodígio bonitão saído de algum romance épico.  Isso é um grande problema, considerando que eu nunca me apaixono por rostinhos bonitos sem cérebro. Ele era um pacote completo. 
Quando o último prato foi retirado, ele segurou minha mão e me encarou por alguns segundos. Senti o peito afundar, sabendo que a nossa noite perfeita chegara ao fim. 
- Não estou pronto para deixar essa noite perfeita acabar. 
"Ele leu meus pensamentos? "
-
Eu não posso comer nem beber mais nada. 
Ele riu, relaxado. 
- Gosta de dançar? 
- Eu gostava. 
Nos encaramos um tempo e ele piscou matreiro, fazendo um gesto ao garçom. 
- Vamos ver do que você ainda é capaz. 



* Vale do Mosel é uma região com vinícolas muito antigas na Alemanha, lá são cultivadas as melhores variedades da uva *Riesling, uma variedade que produz excelentes vinhos brancos. 

  *foie gras  é uma iguaria francesa, feita com fígado de ganso.  





À flor da pele - Ana ( Um capítulo para Degustação)Where stories live. Discover now