epílogo | ou ❝onde há fumaça, há fumaça❞

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Uma peculiaridade sobre o povo de Viveiro: não são pessoas particularmente afeiçoadas a festividades. Enquanto as cidades interioranas vizinhas se aproveitavam de qualquer evento, por irrelevante que fosse, para decretar feriado municipal e extrair daí uma desculpa para beber por dias e dias sem qualquer razão aparente, Viveiro era justamente o oposto. Não tinha festa da colheita da cana, ou homenagens à padroeira da cidade, menos ainda exaltação aos fundadores do povoado que deu origem a província que, muito tempo depois, se tornou Município do Estado de São Paulo.

Ninguém tinha paciência para aquilo.

Exceto quando se tratava do Ano Novo.

Os ritos de passagem definiam Viveiro. Talvez daí a facilidade que eu sempre tive em deixar as coisas para trás e seguir em frente.

Existia essa única tradição, desde que eu conseguia me lembrar. Na praça principal da cidade, a Prefeitura dispunha de uma grande fogueira, e cada cidadão poderia atirar às chamas um pequeno pedaço de papel, no qual escreveria algo que pretendia deixar no passado. Lembro-me que quando tinha seis anos, atirei um papelzinho colorido com o nome da minha mãe. Quando conheci Nicholas, o papelzinho continha a palavra "solidão".

E, na virada de ano que precedeu o incêndio, eu quis entregar a palavra "medo" às chamas.

Esse ano, não teríamos fogueira. Acredito eu que pelos simples fato de ser o fogo aquilo que as pessoas gostariam de deixar para trás, então, que deixassem.

Isso não me incomodava particularmente. Eu não conseguia nem sentir cheiro de queimado sem lembrar do incêndio, então, a falta de fogueira viria em muito a calhar. Mas confesso que era meio frustrante não ter nada acontecendo na cidade no Ano Novo.

Outra peculiaridade sobre Viveiro? Nada mudava, nunca. Nunca.

Eu podia contestar pois subi até o terraço em meus pijamas, uma caneca de chá junto ao corpo. Eu via as mesmas ruas, mesmas casas, e mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas, como se eu nunca tivesse fugido. E eu não sabia o quanto do que eu conhecia permaneceria o mesmo, agora que todos acreditavam que a incendiária havia retornado à cidade.

Minha garganta se fechou com o pensamento.

Beberiquei meu chá e fechei os olhos para me concentrar nos ruídos das casas vizinhas. Músicas e conversas e risadas, e ainda assim, morava em mim um silêncio profundo.

Onze e quarenta e cinco. Meu pai já tinha se deitado, sob o argumento de que "não estava ansioso para a chegada do próximo ano, e ainda seria Primeiro de Janeiro quando ele se levantasse pela manhã".

Eu também não estava particularmente animada para o ano que viria, mas ainda assim. Alguma coisa precisava ser feita.

Dez para meia-noite. Eu olhei à minha volta, e Viveiro estava exatamente como sempre esteve: escura e monótona. Fechei os olhos e lembrei-me da vista do terraço da Leonardo da Vinci no dia em que eu decidi voltar para casa, e deixar Lucas. Finalizei o conteúdo da minha caneca. Eu daria qualquer coisa para tê-lo do meu lado naquele momento.

Voltei para dentro da casa, tomando cuidado para não acordar meu pai. Caminhei a passos lentos até a varanda da frente para poder olhar a rua vazia. Ninguém estava olhando. Eu poderia sumir dali, se quisesse, e ninguém se daria conta dessa vez.

Se tem uma coisa que eu pude extrair desse último ano, é que não adianta tentar fugir do passado. É inútil.

Decerto, você pode se esconder por algum tempo. Sumir do mapa sem dizer a ninguém para onde vai, e preencher a sua vida com novas pessoas que nada sabem sobre quem você é, ou de onde você veio. Mas novas pessoas só são novas no começo, e, quando elas se tornam "velhas pessoas", não vão se contentar com uma visão superficial do que você é.

Quando você tem uma ligação genuína com alguém, esse elo não é só por um momento. Não é só através da pessoa que você é que o outro te enxerga, e sim pelo que você foi, e por onde caminhou até chegar a ser o que é. Se Lucas não me conhecesse tão bem, ele jamais teria iniciado as investigações em Viveiro para descobrir por que eu tinha ido parar em Vitória sem qualquer razão aparente. E ele não se contentou com minhas desculpas esfarrapadas, menos ainda minha tentativa de fugir dele: ele foi atrás até que eu não tivesse mais como fugir.

Ah, e eu era boa em fugir... mas não dele.

E talvez essa fosse a razão do magnetismo que Lucas exercia sobre mim. Ele aglutinava em si a transição entre o passado e o futuro. Era o único que me conhecia como ninguém, o único que podia ver através das minhas mentiras e de tudo o que eu deixei para trás. E tudo que tentamos deixar de lado sem resolver – fugindo covardemente, no meu caso – tem suas formas de nos encontrar no futuro, e as consequências podem ter proporções catastróficas.

E uma mentira, por si só, tem suas feições de catástrofe. Como um incêndio, começa com uma faísca, e é só uma questão de tempo até que domine quarteirões e quarteirões da sua vida.

Se eu não tivesse fugido, talvez ninguém jamais descobriria o meu papel no incêndio que devastou a Fundação Haroldo Santini. Talvez, se eu tivesse ficado e contado tudo o que eu sabia às autoridades, eu não teria de quem fugir. Os culpados seriam responsabilizados e eu nunca mais teria de pensar neles novamente. E Nicholas não me odiaria até a eternidade. Mas, mesmo que eu o fizesse, eu ainda teria que lidar com o que eu tinha feito. Afinal, eu permiti que o fogo se alastrasse.

E, se eu não tivesse feito isso, talvez algumas daquelas vítimas teriam tido a chance de se salvar.

Chegava a hora de me redimir pela minha covardia. Tomar responsabilidade pelos meus atos, e reparar os danos que o meu egoísmo causou a uma cidade inteira.

Disso eu não ia fugir.

Eu não sabia o que ia ser de mim quando desci do carro de Alan na frente do sobrado no qual vivia meu pai em Viveiro. Talvez eu fosse presa, apesar de ser menor de idade. Talvez fosse enviada para um reformatório. Ou talvez, com muita sorte, eu conseguisse provar o porquê de ter fugido; e o verdadeiro culpado seria responsabilizado, e eu estaria livre.

Claro que esta última hipótese era a mais remota de todas, afinal, eu não precisava comprovar o que eu sabia que todos estavam pensando. Uma garota foge logo após um incêndio sabidamente criminoso, fazendo com que todos acreditassem que era mais uma vítima da catástrofe. Seu corpo nunca fora encontrado, mas, ainda assim, insistia-se em presumi-la como morta. Ah, por favor. Onde há fumaça, há fogo.

Ou nem sempre.

Às vezes, a fumaça indica apenas isso. Fumaça. E às vezes tratamos consequências como causa, e nos prendemos em dilemas cíclicos que nunca nos levarão à verdade. E embora eu estivesse longe de ser uma vítima, eu não começei o fogo.

E enquanto alguém acreditasse nisso, eu não desistiria.

Cinco para meia-noite. Esse seria um longo, longo ano.

Dez, nove, oito... três, dois, um.

Em silêncio estava a cidade, e em silêncio permaneceu. Pelo menos aos meus ouvidos, nenhum barulho era relevante o suficiente para acionar a minha atenção.

Exceto pelo ruído de vibração do meu celular no bolso de minhas calças de flanela. Uma mensagem de texto com uma foto anexada. Revirei os olhos e odiei Lucas por me jogar na cara seu ano novo maravilhoso na praia, com todos seus amigos e família, enquanto eu estava sozinha, de pijama, olhando para o escuro e ouvindo o silêncio.

Desbloqueei a tela do celular para responder-lhe um xingamento de qualquer natureza.

A foto anexada estava muito mal tirada para um aprendiz de fotógrafo como Lucas; tão sombreada que eu mal conseguia enxergar do que se tratava. A mim, parecia um vulto escuro de uma garota pendendo pateticamente na sacada de seu próprio quarto, de pijamas e tomando chá na noite de ano novo.

Eu olhei em direção ao solo, para calçada na frente do sobrado.

— Feliz ano novo, Corrêa.

Eu sorri para a idiotice de Lucas Avelar, e o agradeci sem palavras por sempre, e absolutamente sempre, saber o que fazer para que eu me sentisse melhor. 

Onde Há FumaçaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora