Prólogo

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Lydia

Era meia-noite, ela percebeu ao ouvir as características badaladas no sino que indicava a chegada do último carregamento de mercadorias. Uma vez a cada quinzena, Hatertbort, uma das mais importantes cidades do reino, não dormia até que o comércio fosse reabastecido com bens de toda Elthe.

Lydia, assim como muitos órfãos daquele lugar, tinha aquele dia como uma oportunidade perfeita para se esgueirar pelas janelas altas do orfanato, e ganhar alguns trocados ajudando os mercadores.

Dessa vez, contudo, ela não teria essa sorte. O cheiro de água suja dominava o pequeno e apertado porão, seu corpo estava cada vez mais fraco pela falta de água e comida. Lydia estava lá porque havia quebrado as regras, outra vez. Nunca tinha sido boa com regras, se destacava demais. Depois de nove anos morando naquele orfanato, passar despercebida era algo que ela já desistira de tentar.

A administradora nunca havia lhe dito quem eram seus pais, ou de onde viera, nenhum dos mais de cem órfãos que viviam ali sabiam algo sobre suas origens, com exceção, é claro, daqueles que tinham a sorte de se lembrar.

O porão escuro usado apenas para a punição das crianças desordeiras, já não a amedrontava. O barulho da água gotejando lentamente nas paredes de pedra, e os guinchos dos ratos tão famintos quanto ela, já eram familiares. Lydia sabia exatamente onde estavam os ratos, sabia com precisão o lugar que gotejava a água.

A pequena garota, que nem ao menos tinha completado dez anos de idade podia ver o que apenas escutava, e escutar aquilo o que apenas via. Com certeza devia ser alguma falha durante seu nascimento, ou senão algum presente que os deuses tinham lhe dado, talvez, apenas um estranho embaraço de sua mente. Mas independente razão, Lydia tinha seus sentidos da visão e audição ligados e por isso percebia coisas imperceptíveis para a maioria.

O som de passos lentos descendo as escadas de madeira, fez seu estômago se revirar. Ela sabia o que estava por vir, o medo que sentiu logo foi substituído por ódio quando viu o rosto da Administradora iluminado pela luz trêmula da vela que carregava. Lydia se levantou, decidida, do canto úmido que se apoiava.

— Já devia imaginar, dessa vez você foi longe demais, sabe mais do que ninguém que os internos não devem interferir em punições.

Lydia encarou a mulher com um olhar duro.

O som de um trovão anunciou mais uma noite chuvosa, que tinha vindo para atrapalhar os trabalhadores que descarregavam as carroças bem acima de suas cabeças. Chovia muito em Haterbort. Ela fechou os olhou e travou a mandíbula quando escutou o som inconfundível da vara que a administradora usava em suas punições, cortando o ar.

— É arrogante garota, não sabe seu lugar. — A Administradora falou impassível. — Pois vou ensiná-lo para você. Vire-se.

Lydia deu as costas para a mulher, quanto mais rápido começasse, mais rápido terminaria. Ela percebeu a vara se aproximar de suas costas mais lentamente do que foi de fato. A vara encontrou sua pele, rasgando sua carne protegida apenas por trapos, causando uma dor aguda. Ela não pode conter um gemido de dor.

— Se ouvir mais um pio vindo de você, irei dobrar o castigo.

Lydia cerrou os dentes e fechou os punhos, sentindo o ódio crescer dentro si. Ela precisava sair daquele lugar.

A primeira pancada, e as outras que vieram, cortavam sua pele, causando uma dor insuportável. Mesmo de costas ela podia ver cada pancada, sabia exatamente onde iria doer. E isso alimentava cada vez mais sua ira.

O barulho da chuva aumentou, despertando algo feroz dentro de Lydia. Ela franziu o cenho, quando ouviu uma melodia sombria e desconhecida que a administradora parecia ignorar.

— Está aprendendo? Você não é nada, não é ninguém. — A Administradora falou. — Não tem lugar.

Outra pancada veio sincronizada com o barulho de mais um trovão. Lydia estava muito perto da inconsciência, preenchida de ódio e indignação. A melodia que parecia vir de seu próprio sangue atiçou ainda mais o que havia acabado de despertar, fortalecendo aos poucos cada músculo de seu corpo, a enchendo de uma coragem e poder que, antes, não ousava ter.

Ela, então se moveu tão rápido que a administradora nem sequer teve tempo de se surpreender, empurrando e liberando toda a tensão acumulada em seu interior contra a pessoa que desde que nascera tinha sido a razão de sua raiva. A administradora voou e atingiu com força a parede de pedra do porão, caindo duramente no chão, desacordada.

Lydia imediatamente sentiu o poder se esvair dando lugar para a surpresa e o medo.

Antes que pudesse pensar sobre o que tinha acabado de fazer, ela correu.

A Canção do Antigo (Completo)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora