Interlúdio III

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Anak'mar aprendera uma coisa essencial na cidade grande – nunca subestime os benefícios de um plano alternativo. Gatunos, guardas corruptos, filhos mimados de pequenos nobres e vendedores itinerantes, todos pareciam farejar pessoas suscetíveis e situações delicadas para tirar alguma vantagem.

E assim Anak'mar aprendera a se preparar. Levava nas costas o pesado alaúde e uma sacola abarrotada – uma muda de roupas costuradas especialmente para aquela ocasião, uma máscara festiva, comumente usada no dia de Telesan, e uma algibeira repleta de grãos de milho. Este último item era seu plano alternativo.

No dia de Telesan, deus do pecado, festas, álcool e outras diversões em geral, todos na cidade vestiam uma máscara e saíam pela rua para dançar, beber e cortejar. Anak'mar ainda não entendia completamente o que era um cortejo, mas sabia que, nessa época, as garotas de Dona Giovanna atraíam o dobro de clientes.

Estava prestes a sair de casa quando ouviu aquela voz doce e reconfortante.

– Não vai se despedir? – perguntou Giovanna. Mesmo quando dava uma ordem, sua voz soava como uma cantoria.

– Desculpa, eu me empolguei – e correu para abraçá-la.

– Você sabe o que acontece com o afobado – disse Giovanna, afagando os cabelos curtos e ondulados do garoto. – Lembre-se da primeira vez em que você tentou bisbilhotar a Cidade Alta.

– Isso já faz quase dois anos. – Anak'mar odiava quando lhe lembravam de seus erros passados, com os quais julgava ter aprendido. – Dessa vez, tenho tudo sob controle.

– Tem certeza? – Dona Giovanna não disse aquelas palavras, mas, ao olhar sua expressão de preocupação, Anak'mar ouviu-as em sua mente.

O garoto beijou-lhe a bochecha sem aviso.

– Quer saber um segredo? – perguntou Giovanna, sorrindo com aquela demonstração de carinho.

Anak'mar assentiu fervorosamente.

– Vê aquele pano vermelho? – Ela apontou para um canto da parede encoberto pelo tecido. – Aquela madeira é oca, quebrável com um simples chute. Do outro lado, há uma passagem para um local seguro. O meu trabalho é muito arriscado, então tenho que ter uma rota de fuga num caso de emergência.

– Seu plano alternativo.

– Correto, e agora é nosso plano alternativo. – Acariciou-lhe a nuca. – Agora vá, e tenha cuidado.

O garoto deu meia-volta e desapareceu cidade afora.

Já havia se familiarizado com a maioria das intricadas passagens do Baixio. Correu pelas vielas, cortando caminho através de bueiros, por debaixo de pontes e pelos telhados. Lá no alto, os gritos de alegria e excitação dos cidadãos em festa se misturavam às trombetas, flautas transversais, tambores e dúzias de outros instrumentos que animavam o dia de Telesan. Os residentes do Baixio raramente participavam de tal celebração e, os que o faziam, subiam à Cidade Alta para festejar anonimamente.

Anak'mar contava com o anonimato para o sucesso de seu plano.

O topo de um sobrado lhe concedeu um ótimo campo de visão para avistar os festejos. Mais do que isso, podia alcançar a Cidade Alta com um simples salto. Do alto do telhado, sentiu o cheiro de perfume sobrepor o fedor usual do Baixio. Ocultou-se detrás de uma caixa duas vezes o seu tamanho – lembranças tristes lhe vieram à tona – e trocou de roupa.

O traje burlesco ocultava seu corpo quase por inteiro – um par de luvas fez o resto do trabalho. Como um toque final, vestiu a máscara.

Verificou que seu saco de grãos de milho continuava seguro em sua cintura, apoiou-se no parapeito e pulou.

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