Diamante

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O sol ainda não tinha nascido quando ela se colocou na frente da janela do quarto. Não lhe assistia, não olhava para nada. A vizinhança se estendia do lado de fora, logo na sua frente, feita de casas de dois andares parecidas, nas cores de todos os sonhos que ela já tinha tido. Uma visão de seu passado, uma amostra do que achava que seria seu futuro. Um presente ao qual já não pertencia.

Mas ela não a olhava. Ela não via nada. Tinha acabado de colocar seus pés no chão frio, ainda vestia sua camisola e se deixava tremer pela brisa que a encontrou logo que abriu a janela. Eram alguns segundos apenas que se permitiria ficar ali, segundos automáticos nos quais não se deixaria pensar em nada. Não precisava de palavras, de frases ou qualquer coisa concreta. Eram segundos em silêncio, de pé na direção do horizonte. Seus sentimentos não tinham nomes, seus medos não precisavam de rótulos. Ela não conseguiria se deixar pensar naquilo, só sentir por alguns segundos todos os dias, na frente da janela.

Era o único momento em que se permitia reconhecer toda a dor e o peso da situação em que estava, toda a saudades que lhe perfurava e o medo que lhe enfraquecia. Nunca precisou marcar o tempo, seu coração já tinha se acostumado a contá-lo por ela. E então, pouco mais de um minuto depois, ela abaixou os olhos, os focando pela primeira vez no rádio em cima da mesa de cabiceira. Respirou fundo.

Durante as próximas horas, sua vida seria dolorosamente ordinária. Ela se vestiu, se maquiou e foi até a cozinha. Seus olhos se perdiam durante suas tarefas, desfocando e ameaçando se deixarem levar pelo que estava lá fora, pelo que ela não poderia mudar e nem era seu lugar questionar. Mas suas mãos se mantinham ocupadas, fazendo o café que agora só ela bebia, preparando o café da manhã das crianças, limpando o que ficasse pelo caminho.

Ela ignorou o barulho de seus saltos no carpete quando subiu as escadas, ignorou como lhe lembravam de quando tinha entrado naquela casa pela primeira vez depois de se casar. Ignorou o aperto em seu coração, como fazia todos os dias. Fingiu não perceber como as sobrancelhas franzidas do filho adormecido se pareciam com o jeito que marido dormia, como fazia todos os dias. Acordou a filha mais velha e a vestiu em silêncio, torcendo para que ela não perguntasse a única coisa que não queria responder, como ela fazia todos os dias.

E dispensou a pergunta quando a escutou, repetiu a mesma garantia de segurança que nunca tinha sentido, até que a menina assentisse e desviasse sua atenção.

Quando o sol já estava no céu e as crianças sentadas à mesa, ela tomou a primeira xícara de café do dia. Comeu como devia. Ajustou o avental em cima de seu vestido por hábito, se forçando a não deixar as mãos livres. Tocou cada cacho de seu cabelo entre goles, ajeitou o de sua filha, beijou a testa do filho pequeno mais vezes do que precisaria. E olhou para qualquer lugar além da parede de fotos atrás deles.

Antes que sua mãe chegasse para buscá-los, ela já tinha limpado toda a cozinha e dado banho em cada um. Cinco minutos até lá, chegou a pensar. Cinco minutos se forçando a não pensar em tudo que tinha mudado, tudo que estava diferente de seus sonhos. Ficava cada vez mais difícil conseguir se livrar desse tempo extra, que a forçava demais a focar em seus próprios pensamentos, quando sua aflição crônica agora lhe fazia trabalhar cada vez mais rápido.

Em um momento de fraqueza, sentada no sofá do lado dos filhos, seus olhos encontraram o diamante em seu dedo. Uma promessa de uma vida inteira ao lado dele, que agora ela não sabia se teria. Cada segundo que ficava ali era um segundo em que ele arriscava sua vida. E não saber o que estava acontecendo do outro lado do oceano Atlântico era a pior parte.

Quando a campainha tocou, meramente ilustrativa para sua mãe que já entrava sozinha, ela passou um dedo pelo rosto, se livrando de qualquer vestígio de uma fraqueza que ela não podia ter.

Algumas horas depois, ela se encontrava no meio daquelas que tinham se tornado suas maiores companheiras. Mulheres como ela, que se dedicavam aos filhos e que tinham sonhado com o mesmo futuro confortável ao lado do homem que amavam. Mulheres que entendiam o que era nunca saber se sua vida estava se despedaçando em uma guerra distante. Mulheres que tinham encontrado um jeito de sobreviver.

Aquele era o único lugar onde ela não precisava se forçar a desligar seus pensamentos e deixar seus sentimentos escondidos. Ali, ela se entregava completamente a outro tipo de diamante.

Seus olhos se focaram no horizonte por pouco mais de um minuto, tão diferente do que ela vira da janela de seu quarto. Aquele momento nunca tinha feito parte de nenhum sonho que tinha tido em sua vida. Nem ao mesmo nas tardes em que tinha passado com sua família no quintal de casa, um jogo tocando ao fundo como música. Ela nunca poderia imaginar que sentiria seu coração ameaçar explodir de antecipação ao entrar em campo, que seu som favorito seria a voz de um locutor falando seu nome. Nunca teria apostado que seu maior conforto se tornaria sentir a terra embaixo de suas chuteiras.

Ela definitivamente nunca imaginaria chegar a usar chuteiras.

Uma de suas mãos soltou a saia que segurava pelo nervosismo, se juntando à outra no bastão. E então ela se posicionou ao lado do home plate.

Não era seu primeiro jogo. Fazia quase um ano que estava ali, que jogava pela sua cidade e tinha entrado para a recém-criada liga de beisebol feminina. Já fazia quase dois anos que o passatempo nacional se focava agora em garotas e fingia que seus melhores jogadores e estrelas não estavam arriscando a vida na Europa e deixando um buraco para trás. Mas toda vez que jogava, ela via a vida por aquele ângulo novo e tinha vontade de rir. Naquele instante, a madeira áspera do taco em suas mãos era revigorante, seu uniforme era o vestido mais confortável que já tinha usado e a vista dali, a mais bonita do mundo.

Por algumas horas, ela era feliz. Não existia guerra, medo ou saudades. Sua vida se resumia a conseguir rebater a bola que a garota na sua frente, pouco mais nova que ela, lhe mandava; e então correr, com toda a força e vontade que podia reunir dentro de si mesma, por cada base do diamante.

[1095 palavras]

Observação da autora: Diamante é o nome dado à parte mais importante do campo de beisebol! As bases formam um quadrado, mas o desenho arredondado da terra depois delas dá a impressão de ser um diamante!

Diamante [Completo]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora