― Puta que pariu, Marcelo!
Já devia ser a quinta vez que ele enfiava a mão na boca para extrair um sentimento. Era algo normal, mas Carla já estava de saco cheio.
― Eu não sou "Marcelo", droga! Você sabe disso... ― ele respondeu ofegante, meio agachado, com uma mão apoiada num joelho e a outra limpando a boca ― E o que foi que eu fiz?
A outra olhou-o de cima. O passado querendo aflorar. Não era fácil para nenhum deles, claro. Talvez fosse pior para ele. Ninguém mais ali precisava vomitar um emaranhado de sensações, afinal. Apenas ele.
― Nada... ― ela preferiu a compreensão à raiva, assim como no passado. Olhou para o resto do grupo ― Vamos.
Voltaram a caminhar. Fazia quase três horas desde a saída do último abrigo. Um galpão. Abandonado, talvez, desde antes do mundo mudar. Vazio. A vegetação ao redor começando a tomar conta das paredes. Pararam e descansaram. Comeram. Conversaram um pouco, o máximo possível sem começar uma discussão. Quando os corpos sentiram-se menos abatidos e desgastados, partiram. Agora não encontravam nada. Nenhuma construção ou ser vivo. Era quase um bom sinal. Mas desolação total normalmente significava algum perigo por perto.
A estrada era corroída e esburacada, difícil de trilhar. Muitas vezes era mais fácil margeá-la pela vegetação, se não houvesse obstáculos demais. A estrada, porém, podia ser vantajosa ao oferecer pilhagem diversa em veículos esquecidos pelo tempo, como a caixa de paçoca encontrada na semana anterior. Mas também escondia emboscadas...
Andando à frente, Aquário ergueu uma mão, sinalizando para o grupo parar.
― O que foi?
Em resposta, ele virou meio corpo para trás pedindo silêncio com um dedo. Era um gesto ancestral e conhecido, mas ver Aquário fazendo aquilo era bem estranho. O dedo esticado em frente ao capacete azul parecia lutar contra o ato.
― Ele ouviu alguma coisa. ― Alguém sussurrou e foi repreendido com um tapa. Bala-de-Prata tinha um olhar severo e imitava o gesto de maneira agressiva.
Aquário levantou um pouco o capacete, apenas o suficiente para expor o que eram suas orelhas, revelando parte de sua nuca e rosto. Os sons do ambiente, invadiram seu cérebro e ele controlou a agonia, tentando filtrar tudo e separar o que desejava. Ouvia passos. Eram abafados e pequenos, caminhando sobre algo muito fino. Ele levou alguns segundos refinando o som e extraindo interferências, até localizar a fonte. Estavam na estrada naquele momento, passando entre dois containers caídos. Logo depois vinha um trecho mais livre, onde a velha rodovia ganhava mais uma faixa de trânsito e não havia veículos juntos, formando algo como uma clareira. Aquário caminhou até lá e o grupo o seguiu devagar. Ele estacou e recolocou o capacete. Precisava enxergar melhor. Levantou apenas parte da viseira escura e a luz da tarde o incomodou. Permitiu acostumar-se por alguns segundos e então ajoelhou-se em frente à armadilha. Uma linha de pesca bem esticada de um lado a outro da estrada. Ele a enxergava vibrar no ritmo dos passos, agora nítidos e bem definidos em seus ouvidos, mesmo abafados pelo capacete. A vibração vinha de uma das margens da estrada. De onde ele estava, focou a visão apertando os olhos e pôde distinguir uma pequena aranha, caminhando sobre a linha.
Sua boca desenhou um sorriso, mas ninguém veria. Ele esticou um braço logo acima da armadilha para ajudar os outros a ter uma ideia da altura.
― Vocês vão passar por cima do meu braço, um por um. Não vamos ficar aqui pra ver o que essa merda de linha vai ativar. Pode ser só um alarme ou coisa bem pior. De qualquer maneira, não deve ser bom para nós.
Os outros obedeceram; passaram devagar, com cuidado para não fazer besteira. Não era hora de tropeçar ou escorregar.
Durante a tarde, após alguma horas, encontraram um corpo. Amarrado a um poste com metros de fios de rede e cabos USB emendados, fora claramente deixado ali por dois motivos: castigo para quem quer que tenha sido o infeliz amarrado, e aviso para quem quer que passasse por ali. Território perigoso. Saíram daquele caminho.
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Um sentimento por vez.
Short StoryTexto realizado como desafio para o Podcast Gente que Escreve. Os hosts do podcasts dão palavras ou elementos que precisam aparecer no texto. No caso, o texto em questão engloba 3 desafios: 1 - Iniciar o texto com a frase de diálogo: Puta que...