Capítulo 9: Malévola e Murilo

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-Sete dias... porque não aparece há tanto tempo? Não que eu esteja reclamando porque ela é uma chata intrometidazinha... sempre aparecendo em horas inconvenientes, recriminando tudo o que faço e tal, mas é estranho ela não aparecer, antigamente era todo dia quase!

Malévola tamborilava em sua penteadeira. Ela tinha aquela mania de conversar consigo mesma em frente a um espelho que seu servo, Murilo, achava muito sinistro. Quer dizer, a maioria das pessoas que falava sozinha, não era geralmente estranha a ponto de se responder com um outro tipo de voz, mas Malévola alternava entre uma voz maliciosa e rouca e uma sensível e suave. Aliás, fora aquela vozinha gentil que ele ouvira após ser trazido de volta à vida pela feiticeira, uma voz que amava e seguiria por toda sua vida a onde fosse.

Desde o acontecido, ele virara escravo dela e estava sempre ali perto para saciar suas menores vontades. Às vezes, Malévola até se esquecia de sua presença, era quase como se fosse parte da mobília, ele, no entanto, estava sempre no cantinho só observando. Amando-a e odiando-a em silêncio.

O que ele não sabia é que Malévola conversava em frente ao espelho porque via, em seu reflexo,   a face da menina doce que habitava dentro dela.

-Vai ver ela cansou de tentar me salvar- disse a menina, tristonha.

-Bobagem! Ela  se importa com você, uma grande tola, na minha opinião. Acho mais fácil ela estar aprontando para nós duas. Faz alguma ideia do que ela pode fazer?

-Além de voltar? Não- respondeu a menina, tranquilamente.

-Outra bobagem, sua burrinha! Pelo laço de vocês eu sentiria se ela tivesse voltado- afirmou a Malévola má.

-Talvez haja a possibilidade de ela ter voltado numa das florestas encantadas, você não sentiria a presença dela com toda aquela magia antiga bloqueando nosso caminho. Acho melhor mandar alguém vigiar as fronteiras, para que assim que ela sair nós estejamos preparadas para ataca-la. - A voz suave vacilou ao pronunciar a última palavra.

Logo em seguida Malévola voltou a ficar com a voz rouca e concordou com a outra. Gritou para seus criados:

-Cadê aquele imprestável do Murilo? Ah, aí está você, infeliz.  Está tanto tempo sem falar que me esqueci de que estava aí. Vá chamar Ragnar que eu tenho uma missão para ele.

Murilo não sabia a quem ele temia mais, se era sua mestra Malévola ou Ragnar, o general dos zumbis. Ao contrário do general, ele não era um zumbi, mas um homem ressuscitado e Ragnar era louco para devorá-lo por isso, morria de inveja dele ter sido escolhido entre os mortos para reviver enquanto todos os outros ainda sofriam com o apodrecimento da própria carne. Uma vez inquiriu Malévola porque não ressuscitara a todos, no que ela explicou:

-Um exército sobrenatural dura mais que um de humanos. Vejam vocês: estão apodrecendo, mas ainda tem mais força que um humano normal. E pare de me questionar, senão retiro a vida que lhe dei e o transformo em adubo! Se algum dia puser meu discernimento de novo à prova não terei misericórdia!

As vantagens de ser o escravo pessoal da feiticeira (além de servir de objeto sexual particular) era que ficava sabendo dos reais motivos das ações de sua dona, principalmente por causa da discussão entre as duas personalidades dela:

-Com que direito ele vem exigir qualquer coisa de mim? Como se fosse fácil ressuscitar uma pessoa! Já não basta ter que dividir minha essência com esse estrupício aí no canto da parede?- resmungou, olhando para Murilo- Ele rouba minha energia a cada dia que levanta, ainda bem que minha fonte de poder é infinita, mas se me dividisse com esses trastes não teria mais forças para lutar contra a "Cachinhos Dourados"-zombou.

Após o fim de seu flashback, Murilo saiu do castelo em ruínas da Montanha Proibida correndo pelas escadas, pois sabia que sua mestra odiava demora, mas, por dentro, estava louco para voltar. Encontrou Ragnar no Pátio bebendo cerveja (ele podia porque sua degeneração ainda não afetara o aparelho digestivo.Só tinha que beber com a cabeça inclinada pois parte da  face direita tinha caído.De resto parecia um humano qualquer, apenas mais pálido que o normal).

-General? – chamou com a boca seca- A mestra deseja vê-lo com urgência.

-Diga-me do que se trata para eu saber se devo poupá-lo mais uma vez ou morder essa sua barriga mole para saciar a minha fome.- respondeu de mau-humor.

-Você compraria uma briga e tanto se fizesse isso Ragnar, mas posso satisfazer sua curiosidade: Aurora pode ter voltado.

O general arregalou os olhos e sorriu. Aquela era uma notícia que aguardava há tempos, mas não comentou nada com Murilo, ao invés disso continuou implicando:

-Você se acha muito importante só porque está mais próximo a mestra. Garanto que eu faria um serviço melhor que o seu.

Naquele momento, Murilo recuperou um pouco do orgulho próprio e respondeu:

-Se você ainda tivesse todos os membros quem sabe, né meu caro?

As caveiras e os zumbis riram até não poder mais e Ragnar ameaçou a todos e cortou o rosto de Murilo com a espada. Infelizmente, para o general, a ferida cicatrizou imediatamente e ele ficou uma fera. Ainda bem que Murilo saiu correndo, porque recuperar-se de um pequeno corte era uma coisa,  ser partido ao meio era outra. No meio do caminho, porém, ele esbarrou em Malévola. Ela tinha um  sorriso estampado  no rosto que ia murchando conforme um corte semelhante ao dele ia se formando em sua face.

-Onde está aquele idiota do Ragnar, Murilo? Acabo de ter uma grande notícia e o babaca me corta a cara! Preciso tirar um pedaço bem grande de carne daquele monte de estrume.

Murilo a segurou. Ela quase teve um surto com o atrevimento dele, mas o servo foi mais esperto dizendo :

-Senhora, o que ele dirá se vir seu rosto assim? Não é bom que saibam da nossa ligação, se não irão me matar para lhe fazer mal ou me usar para chantageá-la.

 A feiticeira aprovou o aviso e usou seus poderes para se recuperar (o que acabou curando Murilo também) antes de aparecer para seus guerreiros. 

-Mas se lembre, nunca mais ouse encostar em mim, a não ser que eu ordene, está ouvindo?

-Sim, minha Alteza- ele  ajoelhou-se e colocou a mão no coração.

-E nunca mais saia de perto de mim. O corvo fará o trabalho de convocar os guardas.

-Sim, senhora.

Ele não esperava que ela lhe fizesse um carinho em seus cabelos quando abaixou a cabeça. Aquela mulher o confundia, uma hora o tratava como lixo e na outra como alguém amado. Secretamente, era por estes últimos que ele mais aguardava.

-RAGNAR! VENHA CÁ, SEU ESTRUME DE PORCO!-chamou a vilã com um ódio puro na voz.

Ragnar apareceu de imediato balbuciando algo sobre a covardia de Murilo, mas a mestra mandou que se calasse:

-Não sei do que está falando, Lorde Ragnar. Só vim convocá-lo  para uma linda missão. Pegue a trilha dos brilhantes e intercepte Cachinhos Dourados a caminho do Reino das Fadas. Ela estará com um séquito muito autoconfiante e pouco armado. Arrume 100 caveiras e cuide disso, mas não me volte sem Aurora senão mando-lhe de volta para o outro mundo!

Ragnar obedeceu. Em poucos minutos todos os zumbis se juntaram e penetraram num buraco em baixo da terra para viajar mais rápido . Murilo olhou surpreso para sua dona e, antes que ela perguntasse algo, ela disse:

-Ragnar se safou dessa vez, mas da próxima eu me vingarei. Venha comigo Murilo.

-Na verdade, senhora eu ía perguntar como a senhora descobriu a localização exata da sua rival. Há minutos atrás era uma missão de busca, agora é de captura.

-Perspicaz essa pergunta, Murilo- ela colocou as mãos dentro das mangas pretas porque fazia bastante frio- Aurora pisou em solo profano e nesse território eu sou capaz de rastrear qualquer coisa não oculta por magia. Agora entremos, por favor- jogou a capa flamejante por cima do ombro e subiu a escada para sua torre. O corvo Diablo pousou em seu cetro e Murilo fechou a porta.

                                                   



Adormecida entre dois mundosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora