Sobre o Relógio

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Ao meu querido neto, Leléu:

O tempo não passa rápido demais, somos nós que falhamos em aproveitá-lo. É por isso, minha criança, que lhe peço para viver o mais intensamente possível — isso não significa enlouquecer o papai e a mamãe com suas travessuras, meu menino, mas você nunca sabe se ainda poderá sorrir quando encontrar aquele colega novamente, ou o que teria acontecido se você não tivesse aproveitado um sorvete naquela tarde quente de domingo e observado a tarde passar sem maiores preocupações. Qual é a chance de fazer a felicidade-borboleta de alguém, esvoaçante e cálida, exatamente igual por uma segunda vez?

Escute as pessoas mais velhas, Leléu, mas nunca permita que estas o destituam da enorme sabedoria de sua alma jovem e ainda inocente. Aprenda a caminhar lado a lado com o Tempo ao invés de odiá-loindependente de você, ele continuará com o mesmo ritmo.

Sua avó ama demais o menininho que lhe leva flores e dedica os melhores sorrisos justamente porque esta é a sua melhor versão, Leléu. Não importa quanto Tempo passe ou o quão cruel ele seja — você saberá ser uma boa pessoa sempre se conservar esse espírito em seu coração.

Com amor,
Vovó

A carta escrita por vovó quando completei sete anos e emoldurada na parede de meu antigo quarto é a primeira coisa que vejo ao acordar. Sorrindo ao me lembrar das palavras que já sei de cor, me levanto, já pensando em como poderei dar "adeus" a uma das pessoas que mais amo no mundo. Sim, "adeus", porque dona Matilde pode ser desapegada com roupas, rugas e a aposentadoria, mas com a família é um saudosismo e um chorinho apertado de aflição que dá vontade de ficar, apenas para não deixá-la assim.

— Bom dia, Leléu — ela sorri, esfregando um pouco os olhos por trás do óculos.

— Vovó, a senhora não vai chorar, não é? — atravesso a cozinha, a abraçando  — São dois meses fora, não duas décadas.

— Não vou, menino. Não te disse para aproveitar a vida ao máximo? Pois então! — exclama dona Matilde — Agarre a oportunidade e volte para visitar sua velha avó imediatamente, está me ouvindo?

— E o que eu faço com a pobre senhora Bencan? Sou uma pessoa muito requisitada — brinco, já saboreando seu café de coador e seus ovos mexidos.

— Ah, sua mãe pode esperar, a Clarissa ainda é jovem — vovó pisca um olho, desamarrando o avental de sua cintura — Se eu bater as botas enquanto você não estiver aqui, o senhor Tempo vai acertar algumas contas comigo.

***

A estrada até o aeroporto está lotada, e corremos contra o tempo para que eu consiga finalmente me despedir de meus pais e embarcar no vôo número 7738 rumo à Grécia. Comemoramos o ano novo no caminho, com direito a um quase acidente ocorrido com a absurda garrafa de champagne presenteada por vovó.

Como a vida é inesperada — digito uma mensagem para Nat — Aqui estou eu, indo para a Grécia, minha terra natal como o seu deus supremo.

nova mensagem de "Natália Assustadora"
<Apenas nos seus sonhos, unicórnio. Boa viagem, e vê se me traz um deus grego VERDADEIRO de presente>

enviar mensagem para "Natália Assustadora"
<Quanta hostilidade, credo! Você já se deu conta de que vai começar 2017 sem a minha presença?>

nova mensagem de "Natália Assustadora"
<Tomara que o seu avião caia com a interferência desse celular, que não para de me mandar mensagens. Te amo, vai para a Grécia e não volta mais>

Nova mensagem de "Amor"
<Boa viagem, carinho. Te amo muito!! Manda notícias quando parar na conexão>

Sorrio, me recostando no assento apertado do enorme airbus (essa é minha vida, sempre regida por ironias). De repente, a fileira de quatro assentos na parte central do avião parece pequena demais com o susto que levo, originado de uma voz ligeiramente mecânica.

— Sua namorada? — entro em pânico, olhando para os alto falantes sobre minha cabeça e pensando se isso é algum tipo de piada. Por acaso a tripulação está inspecionando minhas reações enquanto uso o telefone celular de forma inadequada no interior da aeronave? Eu sou gay, caramba, moderem seus preconceitos!

— Calma, cara, estou ao seu lado — identifico a origem do som, o celular do garoto ao meu lado, que carrega uma expressão de riso no rosto — Só puxando conversa, desculpa se te assustei. Sou Matheus — o celular diz, estendendo a mão para me cumprimentar.

— Sou Leléu — sorrio — E você me assustou pra caramba mesmo. Pareceu a minha tia avó perguntando das namoradinhas.

— Desculpa, não foi a intenção me intrometer em sua vida pessoal. E, Leléu, regras normais não se aplicam a mim porque sou fabuloso — Matheus acena com a cabeça — Mas acho melhor você desligar seu celular, ou todos vamos cair e morrer por sua culpa. Isso é, se o avião decolar a tempo.

— Que estranho gentil, muito obrigado pela agradável perspectiva tão bem colocada diante de tantas horas de vôo — disparo, sarcástico, enquanto desligo o aparelho.

— Isso é muito esquisito para se dizer, porque acabamos de nos conhecer e tal — diz ele, cruzando as pernas — Mas você é parecido demais com a Let, minha namorada. Tem certeza de que você não é o irmão secreto escondido de mim por todo esse tempo?

— Leopoldo Bencan tem uma irmã e apenas uma irmã, mas ela se chama Emma e vai se sentar logo ao meu lado após pararmos por três horas na conexão em Madrid — declaro, tentando ficar mais confortável no minúsculo assento e quase chutando o passageiro à minha frente no processo.

— Não sei se fico impressionado com o seu nome incomum ou com a sua incapacidade de ajeitar essas pernas enormes em um assento de tamanho perfeitamente razoável. Você deve ser altão, cara.

— Bela maneira de começar uma amizade — gargalho — Já passou da hora de decolarmos, não?

Um Prospecto Sobre o Relógio, a Caveira e o CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora