Capítulo 1

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Após desinfectar as feridas com os restos da minha última garrafa de whisky, me detenho em frente ao espelho para analisar o estrago. Lentamente meu peito se torna uma colcha de retalhos. Novas e antigas marcas, cicatrizes mal-curadas, feridas reabertas tão repetidamente que já não sabem se vale o esforço de tentar curar-se novamente. Muitas delas surgiram por motivos inúteis. Brigas de bar, insultos supérfluos, provocações tolas. Outras são um lembrete de escolhas que fiz. Quando, por exemplo, escalei aquela torre de madrugada, no desespero palerma de tentar, uma última vez, fazê-la enxergar a realidade.

— Não se case com esse monstro, Bela! Você merece alguém melhor. Você merece ser feliz! — Implorei, entre lágrimas, as mãos firmes na beirada da sacada, os pés apoiando-se instáveis contra a parede de pedra.  — Toda a segurança e prestígio que adquiriria com o título de princesa não valeria sacrificar toda sua vida. Por favor.

— Você precisa ir embora, Gaston. — Ela respondeu num sussurro trêmulo, ofegante, constantemente desviando o olhar para por sobre os ombros. — Ele não é um monstro, você está—

Mas nunca pôde concluir a frase. Percebi em seu rosto empalidecido que ele a encontrara. Não sei exatamente o que o levou a despertar, mas lá estava, seu rosto grave e sombrio, contorcido numa carranca aterradora. Ela já o conhecia o suficiente para não intervir. Já experimentara a brutalidade de seu temperamento, sua crueldade. Ele era o príncipe e sua palavra era lei no reino. E ninguém era estúpido ou corajoso o suficiente para enfrentá-lo.

Ninguém exceto eu.

Ou seria, se tivesse tido tempo. Mas, antes que pudesse pronunciar qualquer palavra, ele fincou suas unhas contra minhas mãos que me agarravam à sacada e me empurrou.

A dor pungente que sinto ao leve roçar das minhas vestimentas são prova de que sobrevivi à queda, embora ninguém saiba como. E nem eu o por quê. Ou para quê. O vilarejo me salvou. Revezaram-se nos cuidados por todos os meses em que batalhei alternando entre a consciência e o reino dos sonhos: o reino no qual ela era minha; éramos casados e apaixonados, descansávamos ao calor da lareira, numa casa simples e repleta de alegria, nossos filhos felizes a brincar com um cãozinho levado o qual os presenteamos de Natal. Contudo, eu despertava e tudo sumia, exceto a agonia, apenas a realidade insuportável de que ela se lançara às garras daquela silhueta oca e sem alma. 

Foram eles que me trouxeram à vida. Os habitantes desta vila que ela detestava, esta aldeia que era pequena e simplória demais para suas ambições, essas pessoas demasiadamente simples e contentes para o gosto de uma jovem perfeitinha e complicada, cheia de filosofias e sonhos de grandeza.

E como eu os retribuo? Embriagando-me e me metendo em brigas sem sentido. Parabéns, palhaço.

Viro a garrafa de whisky nos lábios, mas apenas uma única gota que sobrara respinga na minha língua. Então jogo o frasco contra a parede, resultando numa explosão violenta de vidro ao impacto.

Isso precisa acabar.

Sento-me à mesa, resignado, e tento forçar-me a entender que este instante agora é uma despedida de meus dias de escuridão. É hora de tocar adiante, prosseguir com a vida, deixar que os cortes se fechem.

É aí que ouço o esmurrar agitado contra a porta.

Pela altura da cera das velas, sei que já passou há muito do horário de visitas cordiais. Então levanto e puxo uma adaga afiada da minha coleção à parede, cujo centro está abarrotado com lâminas, machetes, facas de caça e, até mesmo, espadas. É só uma precaução, mas estou pronto para usá-la se necessário. Sempre imaginei que, com a notícia de minha recuperação, o príncipe enviaria um de seus lacaios para terminar o serviço. A qualquer momento.

Escancaro a porta repentinamente para pegar quem quer que seja de surpresa. Mas, creio que o choque em meu rosto seja equiparável ao do visitante indesejado.

Olhos castanhos doces e apavorados me encaram, mechas escapam de seu capuz, sua expressão semi-oculta na penumbra. Após alguns segundos de silêncio, ela adentra com urgência e olhos inquietos, sem palavras ou autorização, como se estivesse em fuga.  Sinto-me paralisado por mais alguns instantes, um dos meus braços apoiado no alto do batente, meu coração batendo desordenado no meu peito e o oxigênio nos pulmões mais elusivo do que quando recebo um golpe no estômago. Olho ao redor na rua, à procura de possíveis perseguidores ou testemunhas, e, por fim, tranco a porta antes de voltar-me a ela.

Sentada na cadeira em que há pouco eu determinava deixá-la para trás, está nossa alteza real e aquela que foi o amor de toda minha vida:

Princesa Bela.

Princesa Bela

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PRÓXIMO CAPÍTULO: Sexta-feira, 30 de dezembro

[779 palavras]

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