Capítulo 1 | Registros

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Registros

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São Paulo, verão de 2099

"Sinto a minha pele transpirar, gotas de suor irrompendo uma a uma e seguindo o mesmo caminho, deslizando e inundando meu rosto. Logo, misturando-se numa dança infernal às outras centenas de gotas que também jorram dos meus olhos.

É difícil entender como deixamos chegar a isso. Um dia tivemos a esperança de sair daqui, hoje a esperança é um punhado de comida e uma vasilha de alumínio com água. O mundo mudou muito. Nos tornamos aquele futuro sobre o qual os livros tanto especularam, com algumas poucas diferenças tecnológicas e um mundo não tão belo como se esperava. Não temos carros que voam no piloto automático, nem computadores mais evoluídos do que foram os celulares; não temos pontes que se movem, nem arranha-céus que superem as mais altas nuvens. Se houve algum, certamente foi destruído com o mundo contaminado lá fora.

A realidade em que vivemos é aquela em que fabricamos nossa própria comida e ela não é saborosa como um famoso prato de macarrão como os antigos dizem, eu pessoalmente desconheço. Sei que macarrão era gostoso, porque livros não mentem. Comemos uma espécie de ração cultivada de algas mantidas em um laboratório antigo do búnquer, algumas verduras mais simples e resistentes, e produzimos nossa água reciclada da nossa urina. Meu pai e meu avô, como engenheiros, colaboraram na manutenção desse importante processo; parece nojento, eu sei, mas é o que nos garantiu a vida até então. Sem urina reciclada, sem água. No último nível do búnquer, onde ficam as máquinas, estão os purificadores de água. Eles funcionam através de um sistema de bombas e tubos. É um processo longo e complicado que talvez não importe a ninguém.

O que importa saber é que, por ser este um processo longo e demorado, utilizando-se as velhas máquinas desse búnquer, a água aqui dentro é ouro, tudo é racionado. Nosso presidente-líder separa o melhor para "os melhores" e o resto para os mais "inferiores", como ele mesmo os denomina. É aí que entra a irmandade. Longa história. Nossos dutos de ar estão falhando frequentemente por conta de máquinas velhas, muitos de nós sofremos com graves problemas pulmonares; e o pior é que não temos remédios suficientes para nossos tratamentos. Vejo esse desespero nos olhos da minha mãe diariamente, que, mesmo sendo parte do conselho, encontra dificuldades para conseguir apoio para as ideias que sugerem soluções para os atuais problemas.

Nosso líder se recusa a enviar uma missão à Terra. Quem sabe se por lá encontrássemos uma forma de sobrevivência melhor que aqui embaixo; quem sabe se encontrássemos um ar respirável outra vez; quem sabe se pudéssemos pelo menos tentar.

Será que estamos presos neste abrigo subterrâneo, sem podermos sair, enquanto lá fora há um planeta que sustenta a vida novamente? Enquanto uma missão permitida não for à frente, nunca saberemos. Estamos à deriva, como um navio sem direção. Não temos liberdade, somos privados de viver. É o que eu chamo — ou o que sempre foi chamado — de ditadura. Talvez realmente tudo lá em cima seja apenas escombros e retratos de vidas que um dia andaram por lá em um passado remoto, mas, talvez, talvez não sejam apenas retratos e histórias.

O Legado dos SeTeOnde as histórias ganham vida. Descobre agora