6. Aparição (parte 1)

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Depois, deitada na rede sob algumas árvores, tentou acessar alguma coisa na internet com o celular, mas era bem complicado conseguir. Primeiro porque o sinal da operadora era muito limitado ali, depois que seus créditos eram restritos e quase não dava para acessar nada até o aviso de que tinha acabado.

Mas, ainda assim, ela sempre tentava entrar uns momentinhos diários no Facebook e no Instagram, que eram os lugares onde sempre podia receber notícias de vários parentes. Os parentes de sangue, da sua etnia, como os primos e outros que moravam em diferentes reservas e terras indígenas, e outros que também chamava de parentes, mas que não tinha nada a ver com a etnia e povo local. Chamavam de parentes por serem também indígenas.

Nas duas redes sociais havia postagens das ocorrências nas aldeias, de retomadas e da situação de despejo da Terra Indígena Taquara. A coisa estava tensa por lá. As notícias e fotos mostravam os fazendeiros e seus capangas em volta dos barracos, atirando, ameaçando e confrontando. Do outro lado, a polícia federal, com um número enorme de carros e homens armados.

Porãsy temeu por seus pais, tios e avô. Temeu, ainda mais, por sua irmãzinha, que estava nas fotos postadas pela mãe, toda pintada, usando cocar, colares e pulseiras da etnia.

Ainda pelas postagens era possível perceber que havia muitas pessoas no local. Isso significava que os indígenas de Taquara conseguiram um grande apoio de outras aldeias.

— Você viu as notícias de Taquara que postaram no Face e no Insta? — perguntou à irmã.

— Vi, sim — ela respondeu. — A situação lá está tensa.

mesmo. Acho que a mamãe e o papai não voltam tão cedo. Não antes da situação lá amenizar — falou com a voz nervosa.

— A mamãe ligou, mais cedo. Disse que eles estão bem e que, qualquer coisa, é para ligar pra eles. Disse também que, se a situação lá ficar mais complicada, ela volta a ligar.

— Que bom que está tudo bem — Porãsy disse, se levantando da rede. — Acho que vou lavar algumas de minhas roupas e tênis.

— Tá bom — disse a irmã, tomando seu lugar na rede. — Vou descansar um pouco e depois vou lá também, lavar um pouco das minhas roupas e da mamãe.

Porãsy ajuntou o que tinha de roupas sujas, pegou uma barra de sabão, escova, sabão em pó, colocou tudo dentro de uma banheira de bebê, que fora de sua irmãzinha, e foi em direção ao pequeno córrego que passava nos fundos do acampamento.

Ali, perto da fonte, as águas ainda eram limpas e claras e, de tanto serem usadas pela comunidade, formavam uma pequena lagoa. As crianças e adolescentes gostavam muito de nadar ali. Também, muitas vezes, era ali que tomavam banho.

Nas crenças antigas do povo de Porãsy, o lugar era sagrado. Fora dado aos primeiros que chegaram ali para habitação pelo próprio Nhandejáry (2)Quem recebera as terras, as águas e as minas, em um cerimonial religioso e em nome da família extensa, fora o Pa'i (3). Então eles poderiam usufruir de tudo ali e em volta, mas sempre sabendo que deviam respeito.

O sol estava alto, bem sobre a cabeça de Porãsy, e bastante quente. Ela colocou o que levara na margem da lagoa e entrou na água, antes de começar a lavar as roupas. Mergulhou, com a roupa que usava mesmo, e ficou ali, brincando com as águas.

A adolescente gostava desses momentos. Eram alguns daqueles instantes em que se sentia mais indígena. Sabe, isso de índio que mora na floresta?! Ela gostava mesmo disso.

Um barulho no mato a deixou em alerta. Era leve, como galhinhos sendo quebrados e folhas sendo esmagadas. Alguém estava se aproximando. Podia ser sua irmã, mas achava que não era ela. Se Yvy Rajy tivesse deitado na rede para dormir, ainda não tinha dado tempo de acordar.

Porãsy nadou em direção à margem e saiu das águas, observando em volta. Olhou ao redor apreensiva. Pensou ter escutado passos.

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Continua  


Notas de rodapé: 

1- Aty Guasu – Grande assembleia Guarani e/ou Kaiowá. Movimento político Guarani e Kaiowá que ressurgiu na década de 80, como reação a atos truculentos de fazendeiros e seus capangas contra estes povos. O objetivo foi o de fazer frente ao processo sistemático de etnocídio e à expulsão e dispersão forçada das famílias extensas indígenas do seu território tradicional. Desse movimento participam, hoje, centenas de lideranças Kaiowá e Guarani. Durante esses eventos ocorrem discussões políticas e, ao mesmo tempo, se realizam rituais para o fortalecimento da luta. É das Aty Guasu que partiram, nas últimas décadas, as reivindicações de demarcação de terras, além de denúncias e sugestões sobre possíveis soluções para problemas enfrentados por esses povos na atualidade. (BENITES, Tonico: História da Aty Guasu Guarani-Kaiowá/MS, entenda o contexto – em Blog da Aty Guasu). Acesso em 04/05/2020. .

2- Nhandejáry palavra que significa Nosso Dono, e é usada para se referir ao Deus e Senhor particular de cada um.

3- Pa'i – rezador, ou xamã


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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora