Capítulo 2 - Seleção

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A moça loira pediu que eu a seguisse até um auditório com um palco em madeira numa das extremidades e cadeiras acolchoadas tomando o restante do ambiente. Daí iniciou-se um desfile de rostos e vozes jovens que pretendiam dar vida àqueles que eu conhecia a tanto tempo, e que só viviam em mim e nas páginas.

O dia todo foi dedicado a encontrar a atriz que seria Sol. A partir dela, todos os outros seriam escolhidos. Cinco meninas foram pré-selecionadas e seguiriam para a fase seguinte, que seria dali a dois dias. Tempo para a equipe deliberar e traçar estratégias na busca dos melhores profissionais.

Aproveitei o dia livre para levar os meninos ao parque. Lá encontraria Josué, meu grande parceiro, presente em todos os momentos. Ele foi a primeira pessoa a entender minhas histórias, e provavelmente o único a aceitar que a minha imaginação quase infantil não me tornava menos adulta e nem menos responsável. Podíamos passar horas vendo figuras em nuvens e logo em seguida sair para negociar um financiamento no banco. Os meninos o adoravam e eu confiaria a minha vida a ele.

A tarde estava quente, sentados na grama, tentávamos desenhar criaturas, enquanto os gêmeos lutavam com sabres de luz, alternando brigas e gargalhadas, quando um cachorro grande veio correndo na nossa direção. Mesmo adorando bichos, fiquei alarmada e levantei depressa, tentando alcançá-los antes da fera. Ele podia só querer brincar, mas era um animal desconhecido, não ficaria tranquila com ele tão perto dos meus filhos. O dono do bagunceiro veio em seguida, vermelho, ofegando e pedindo desculpas pelo susto. Como os meninos ja riam e recebiam lambidas, relaxei e deixei que brincassem um pouco, o rapaz não se opôs e conversava com eles, que agora já mostravam seus sabres novos e ele mostrava como manejar uma espada. Eu assistia à cena, enquanto Josué fazia carinho no cachorro, que agora sabíamos se chamar Thor. Os meninos se afastaram para treinar os golpes ensinados pelo novo amigo, quando o rapaz olhou direto para mim.

- Você é Aurélia Silva - não era uma pergunta, fiquei meio sem graça. Não é comum escritores serem reconhecidos na rua. Mesmo assim confirmei - Adoro seus livros.

- Obrigada. Qual deles você já leu?

- O primeiro e o segundo Herdeiros de Mihaz, além do Mistério em Arco Forte - Josué tentava sinalizar alguma coisa, mas decidi ignorá-lo.

- Legal. Desculpa, não lembro se você já disse. Qual o seu nome? - ele coçou a sobrancelha.

- Este é Jay Hite, Aurélia, ele é meio que um ator famoso. - Josué me avisou e eu fiquei um tempo decidindo se devia ou não perguntar o que fazia dele um ator famoso. Sorri amarelo e estendi a mão a ele - Desculpe a Aurélia, quando assiste a filmes, se concentra tanto na história que acaba esquecendo que tem gente de verdade fazendo esse trabalho - o rapaz deu um meio sorriso e então o reconheci aquele rosto. Não de uma série qualquer, mas de alguém que só existia para mim. Senti um frio na barriga.

- Jay, você está envolvido em algum projeto atualmente? - ele respondeu que estava lendo alguns roteiros - Pode se encontrar comigo no hotel amanhã? - Ele concordou. Marcamos o encontro e ele foi embora com Thor.

À noite, fizemos uma pesquisa rápida a respeito do rapaz. Josué mal podia acreditar que eu nunca o havia visto nas telas. Descobrimos no final da noite que eu já tinha visto, sim, mas não me lembrava daquele rosto e muito menos conseguiria ligá-lo ao jovem suado e vermelho, usando boné que vi no parque mais cedo.

Ele chegou às duas em ponto. Tínhamos marcado na piscina do hotel, onde Marie brincava com os meninos e eu podia ficar de olho nos três. A ideia era conhecer melhor o ator antes de propor algo que eu nem tinha certeza que podia. Devidamente trajado e na calma do hotel, pude vê-lo direito. Cachos pretos quase nos ombros, barba rala, olhos escuros e expressivos, corpo naturalmente forte, boca bem desenhada. Sem dúvida era um rapaz bonito, apesar e principalmente por não ostentar a perfeição hollywoodiana.

- Então, você disse que já leu meus livros. Acompanha literatura teen?

- Na verdade, gosto. Meu trabalho me pede que esteja inteirado do que acontece neste universo. Li os seus porque minha sobrinha me mostrou no último Natal e eles foram uma grata surpresa - controlei o impulso de perguntar o porquê da surpresa.

- Então, me diz qual a sua impressão geral da história, como enxerga Mihaz? - ele riu, franzindo a testa

- Parece um mundo que vale a pena defender. - agora era a minha vez de sorrir. Eu estava certa. Ele seria a melhor escolha.

Eu estava nervosa sem saber como faria a próxima pergunta. Passei preciosos segundos observando os meninos na piscina, pensando no que diria a seguir.

- Jay, você se vê como um dos meus personagens? - ele ficou sério, encarando algum ponto do piso

- Talvez. Você me imagina sendo um deles? - Nunca fui boa em dissimular o que pensava, apenas assenti.

- Se te interessa fazer parte, alguém da produção entra em contato com a sua agente para negociarmos tudo.

- Interessa. Podemos seguir com a negociação. Agora responda, quem deles você vê em mim?

- Jerko. Vocês têm o mesmo olhar - ele riu com vontade, até notar que fiquei constrangida.

- Desculpe, é que acho fantástica essa relação do escritor com seus personagens. Estou lisonjeado com o convite. É a primeira vez que sou convidado pessoalmente por um escritor.

Cheguei cedo ao estúdio e fui imediatamente procurar Saul Hoffa, o diretor de elenco. Contei que havia decidido o ator para o papel de Jerko, e que a partir dele, escalaríamos o restante dos personagens. Ele me ouviu calado, e quando terminei, o homem estava vermelho e o magnífico bigode cinza tremia.

- Você abordou um ator no parque? - pra falar a verdade, desconfiei que isso fosse inadequado, agora tinha certeza - E você disse que ele era a pessoa certa para o papel, sem que ninguém mais da produção tivesse aprovado, visto, ou discutido a escolha dele!? - agora ele começava a falar muito alto, atraindo a atenção de quem estava por perto. Senti meu rosto queimar e as pernas bambearem. Respirei fundo e me mantive altiva.

- Foi exatamente isso - eu mantinha a voz calma, ignorando os tremores - Decidi que aquele profissional era o mais adequado para interpretar o personagem. Agora, você vai ligar para o agente dele e negociar o contrato. Eu não preciso da opinião de mais ninguém, porque posso não ser especialista em cinema, mas ninguém conhece meu personagens melhor que eu, e se eu disse que Jay Hite nasceu para ser o Jerko, é isso que ele vai ser.

Saí da sala sem olhar para trás, torcendo para não tropeçar nos próprios pés, ciente da equipe olhando chocada para mim. O pânico veio no instante em que entrei no meu carro. Eles poderiam cancelar a filmagem? Quem eu pensava que era para divar daquele jeito com um cineasta experiente? No contrato ficava claro que eu participaria de decisões importantes para o filme, mas nada dizia que eu poderia decidir sozinha qualquer matéria. Apavorada, liguei para o Josué.

- Oi, querido - eu tentava inserir um sorriso na voz

- Linda, o que houve?

- Por que? Não posso mais te ligar no meio do dia? - eu lutava para me manter firme.

- Pode, mas você não faz isso, a não ser que o mundo esteja acabando. O que aconteceu?

— Eu estraguei tudo! – a frase saiu entre soluços e as lágrimas finalmente desceram. Repeti palavra a palavra a conversa com o diretor.

Mais Que Perfeito  *Degustação*Onde as histórias ganham vida. Descobre agora