Um Caçador Depois do Fim do Mundo

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A humanidade, como um dia foi conhecida, encontrou seu crepúsculo. Infelizmente, não conheci os tempos áureos... Quando nasci, tudo já estava assim.

Agonizante.

Não sei ao certo como as coisas terminaram, se a tal Maldição veio de uma guerra ou o raio que o valha. Os poucos livros que sobraram eram usados como lenha em minha aldeia, só uma das milhares que seguiam sem instrução. Tive sorte de me perder e ser salvo pelos civitas, ou "A Última Civilização" num dialeto ancestral. Ao menos, foi o que me disseram... Ainda decorrem problemas de tradução. Importa é que só fui descobrir conceitos como os de bibliotecas graças a eles, embora minha estadia nunca seja longa.

Não nasci para ficar enjaulado num domo. A minha vocação sempre foi a caça.

Nuova Utopia, lar dos civitas, não fugia do padrão desolado nos arredores do meu lar, mas ainda se tinha água encanada e umas poucas baterias funcionais, cuidadosamente racionadas. Armas de fogo, infelizmente, persistiam como artigos de decoração sem as fábricas de cartuchos, além do metal ser algo tão raro quanto um dia sem sol.  Vivemos reduzidos a nada, somente com o lixo dos antepassados, estes malditos algozes de sua própria destruição.

Mas como eu dizia, o meu gosto era empunhar uma lâmina e arrancar algumas cabeças daquelas criaturas desgarradas. Pouco me importava consumir sua carne, apesar da Nuova Utopia já enquadrar a minha equipe de caça entre os deuses. Eu só quero os gritos, o sangue das desgraçadas descendo lânguido por minha pele... Perdi muito amigos para elas, mas nada se compara ao dia em que despedaçaram meu pai. Tive de presenciar isso inerte, acuado num buraco de vermes, tendo de comer escorpiões e sentir a putrefação de meu velho durante uma semana. Assim, trêmulo e reduzido a um farrapo de carne e excrementos, os civitas me encontraram.

Ah, os rosnados! Como ficam lindos convertidos em dor!

No perímetro oeste, escutei o grito de um dos homens. Acho que encontramos a ruína. Havia apenas areia por toda parte, no que os mapas civitas chamavam de Mar Negro. O seu final, ao que parecia, era um elevado considerável de areia e cascalhos que se mantinham úmidos sabe-se lá de que maneira.

Convocando o restante da equipe que havia se espalhado para cobrir a área, eu aguardei encostado em nosso juggernaut solar. O calor estava a pino, provavelmente a ponto de matar sem as roupas isolantes; teríamos energia pelo tempo de uma pequena expedição. Com sorte, esta cidade teria um depósito de genes funcional... Como a Maldição do Fim nos tornou inférteis, todo povo tinha de assegurar ao menos um aparelho de clonagem automatizado, algo tão importante que, na minha aldeia, era venerado como o Deus Javé em pessoa. Nuova Utopia precisava de filhos, e com sorte nós seríamos os seus pais. Faria destes os maiores caçadores da História, pelo meu sangue e de todos que amei.

Um sonho que eu não viveria para realizar.

As areias começavam a tremer sob os pés, e eu já podia sentir o bando de respirações ofegantes. Se não mencionei antes, tínhamos rádios de longo alcance para a comunicação... O berro daquele pobre rapaz, da distância que veio, com certeza não chamou ninguém. Claro, elas viviam sempre com fome, ao ponto de devorarem umas as outras. Dizia-se, inclusive, que algumas evoluíram ao ponto de digerir concreto: pessoalmente não acredito nesta teoria, apesar de já ter visto as mordidas nas estradas. Credita-se o fim do mundo a esse bando de seres cambaleantes. Como aconteceu, quem se importa? Conhecimento não é o tipo de coisa capaz de salvar sua cabeça de quem não sabe pensar. Na verdade, torna ela até mais gostosa.

Meus rapazes ainda não chegaram. Estava sozinho... A primeira maldita já despontava no horizonte, e seu grunhido gutural ao cruzar os olhos vazios nos meus logo evocava uma multidão. Logo estariam aqui, e se hesitasse não sobrariam nem os meus ossos. Este era o momento em que eu deveria me trancar no Juggernaut e atropelar quantas fossem possíveis, mas isso só postergaria meu fim contra milhões de inimigos incansáveis.

Do bolso em meu peito, tirei um cilindro gelado, preenchido por um líquido invisível. Era como sangue para tubarões, e eu poderia arremessá-lo longe, dividir suas forças, mas simplesmente rasguei meu traje e espalhei aquela loção pelo corpo. O cheiro nauseante intensificava a ardência do sol, parecendo transformar minha pele em vidro, e elas começavam a correr pelas areias, tropeçando, agredindo umas as outras como as cadelas raivosas que eram. Inflando todo o meu ódio, desenterrei minha arma do chão e a brandi ameaçadoramente, espalhando sujeira como o escudo de minha própria violência. Tomara que os outros não tenham morrido, pois alguém ainda precisaria regressar com a pilhagem. Espero que escutem meu último urro de batalha ecoando pelo mundo inteiro:

VENHAM PROVAR O MEU MACHADO, SUAS VADIAS!!!!!!!!!!

FIM

Todos lembram de uma velha propaganda da Axe chamada "O Fim do Mundo", onde um bando de moças com hormônios em fúria se atropelam atrás de um homem no meio da praia usando o desodorante? Este conto parodia a situação

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