Viagem literária

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Ele pediu licença para deixar o seu posto na cabine de comando

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Ele pediu licença para deixar o seu posto na cabine de comando. Teria deixado mesmo que não lhe tivessem permitido. Tinha chegado a hora. 

A mesma hora em que todos os dias, de segunda a sexta, ele corre para a plataforma, sentido norte, e espera, bem no final do longo corredor, atrás da coluna, próximo aos três banquinhos azuis claros para idosos, portadores de deficiência física ou obesos, que nunca eram utilizados por pessoas desse tipo porque ficavam longe demais das escadas rolantes e elevadores de acesso.

Espera um, dois, no máximo três minutos e então ela chega. Senta com calma, tira um livro da bolsa e, absorvida pelas palavras mágicas, deixa alguns trens passarem até se levantar e caminhar com o rosto enfiado entre as páginas para dentro do metrô. Nunca se senta. Ele sai detrás da coluna e fica a observar até o trem partir, imaginando o que poderia haver nesses livros que faz com que ela pareça se alienar de tudo o que há em volta: duas senhoras falando alto, homens a observando de maneira pouco elegante, um mendigo nauseabundo lutando para entrar com sua grande trouxa antes da porta fechar, adolescentes tentando criar confusão.

A primeira vez que a viu, foi numa terça feira de chuva. Reparou nela porque achou graça no seu jeito de segurar o guarda-chuva meio descaído no ombro enquanto tentava virar uma página de um livro de capa colorida. Ela estava na entrada da estação que ele tentava enxugar com um velho rodo. Tudo a sua volta parecia cinza e taciturno, as pessoas andavam rapidamente e com os rostos voltados para baixo, mas não ela. Ela sorria, equilibrando livro, guarda-chuva e bolsa. As bochechas rosadas, os olhos lampejando, o olhar vidrado. Fechou o livro para conseguir pegar o bilhete e o cumprimentou rapidamente com a cabeça. Ninguém ainda o tinha cumprimentado naquele dia. Ninguém o fazia em dia de chuva.

Dois dias depois, cruzou com ela no mesmo horário, perto da máquina de carregamento de bilhete único. Ele tirava uma dúvida de um grupo de estrangeiros, ela passava com andar rápido e um livro de capa preta e verde debaixo do braço. Largou os gringos e a seguiu. Ela entrou na plataforma acelerando o passo, sentou no banquinho azul , largou a bolsa do lado e abriu o livro já nas últimas páginas. A sobrancelha cerrada, o olhos correndo de um lado para o outro, os pés agitados. Foi nesse dia que ele descobriu que ela roía as unhas quando ficava nervosa. Pensou: que notícia ruim deve ter nesse livro? Preferia o outro de capa colorida. Nesse dia, ela só entrou no metrô depois que a história acabou. Fechou o livro, segurando ele no colo com as duas mãos e ficou assim, parada, o olhar fixo para frente, como se quisesse entender o que tinha acabado de ler. O trem chegou, ela se levantou e antes de partir ela já tinha tirado outro livro da bolsa, um pequeno, capa de uma cor só e apenas uma palavra no meio: Poesias.

Nos dias, semanas e meses que se seguiram, ele a observou e aos livros que carregava. Notou ela suspirar por vários dias, perdida num livro grande de nome difícil - era nome de mulher, ele tinha a certeza - e reparou no seu olhar tenso, nos ombros contraídos e nas unhas roídas enquanto quase desaparecia num livro fino e comprido que trazia na capa a imagem de uma arma fumegando. Com a primavera, percebeu que ela estava mais descontraída e que muitos dos livros que carregava traziam imagens de seres fantásticos na capa ou de jovens casais apaixonados, flores e bicicletas. Ficou com pena dela quando lágrimas rolaram pela sua face durante um livro longo de capa sombria - Porque ela continuaria lendo algo que a faz chorar? - e nervoso quando ela quase caiu no vão entre a o trem e a plataforma de tanto gargalhar com uma história em quadrinhos.

Tinha se acostumado com essa rotina: esperar o horário, inventar uma desculpa, correr para a plataforma fazendo jogos mentais: hoje o livro deve ser longo! Hoje deve ser verde! Hoje ela deve estar rindo! Hoje deve ter capa dura! Hoje, ele imaginava, será um livro sério, daqueles que faz ela franzir os olhos e torcer o canto da boca. 

Esperou atrás do poste, como sempre fazia, sonhando com as histórias, imaginando as palavras, pensando nos livros. Passou um trem, dois, três, ela estava atrasada. Estranho, ela nunca se atrasava. Ele esperou. Talvez o livro que trazia fosse muito pesado. Chamaram o nome dele no altifalante. Ele não se mexeu. Ficou preocupado. 

Então, um homem se aproximou do banquinho azul. Fez que ia se sentar mas algo o impediu. Olhou para os lados, confuso, até encontrar os seus olhos. Chamou-o com as mãos. Ele não entendeu. Chamou-o de novo - é comigo? - fez que sim com a cabeça.  Chegou devagar, desconfiado. Ele lhe entregou um bilhete "Quem encontrar, favor entregar para o homem que sonha atrás da coluna" que estava no banquinho azul,  por cima de uma grande pilha de livros.


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