O funeral

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O personagem principal desta história, reza a lenda, foi esquecido nesse mundo ou não ouvia mesmo os chamados da morte. O que se sabia, ao certo, era sua idade, que já passava de um século. E foi numa manhã de maio, que o destino cumpriu seu trabalho e veio buscá-lo. O ancião centenário enfim partiu dessa pra melhor.

Sempre amou o branco, sua pureza pacífica e iluminada, e por isso deixou avisado seu último desejo: queria ter seu caixão coberto com peônias. Brancas.

Para não desagradar o falecido, seus filhos, netos e bisnetos enfeitaram a humilde sala de sua casa, como um jardim chinês. Um ar de magia e mistério cobria o recinto, e o defunto parecia sorrir em sua paz eterna.

Seu filho mais velho deu um longo suspiro, antes de iniciar a cerimônia de despedida do pai. Ao seu sinal, uma pessoa adentrou o recinto, coberta de preto da cabeça aos pés.

A família e os amigos, que choravam em silêncio, observaram atentos aquela alma que se fazia presente. Quem seria? Conhecida do falecido? Parente distante? Vizinha?

Um vento álgido soprou pela janela, arrepiando corpo e alma dos presentes. Mas nem por isso a pessoa de preto deixou-se abalar: sentou-se próximo ao falecido e tirou o pequeno calçado, expondo seus belos pés descalços. Logo após, foi a vez do xale preto, que revelou seu fino pescoço. Os presentes ficaram imóveis com a cena, esquecendo por um momento da tristeza e do luto. Entreolharam-se, direcionando seus olhares curiosos para a pessoa de preto.

Logo foi a vez do véu, que foi ao chão revelando o belo rosto de uma jovem mulher. O nariz e a boca pequena faziam par perfeito os cabelos finos, negros como suas roupas. Para espanto de todos, logo se desfez também da túnica. O corpo magro, de beleza única, ficou coberto apenas pelas roupas de baixo.

Ninguém mais piscou os olhos. O clima de luto deu lugar ao espanto com a presença de tão belo ser no recinto. Quando sentou sobre o falecido, e tirou o que restava de suas vestes, a surpresa foi geral: sua nudez pálida e inesperada parecia ter parado o mundo, ao menos por alguns instantes. Todos ficaram congelados naquele momento, junto com o falecido ancião e a misteriosa moça de preto. E, no fim de tudo, o filho tirou seu chapéu e repousou sobre a cadeira. E cada presente deixou uma contribuição, que foi recolhida pela jovem ao final de seu trabalho. Todos retornaram para suas vidas mundanas. E o xale preto de Camila foi deixado junto ao morto, que enfim pôde partir para sua morada eterna.

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