Quase morte - Dia 6

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Dia 6, manhã. Como em uma movimentada rodovia, informações trafegavam em alta velocidade naquela mente esgotada, que tecia seu desconexo enredo de sonho e fantasia à beira mar.

No sonho profundo e distante, um barco percorre o horizonte da praia sem pressa, com pessoas admirando a beleza daquela ilha paradisíaca. Os visitantes parecem tão surpresos com a natureza, que nem percebem aquela alma carente, deitada na areia, precisando de ajuda. A pobre alma, ao se dar conta dos fatos, levanta-se em desespero, gritando por socorro. Um grito tão alto que pôde ser ouvido a quilômetros de distância, cobrindo a imensidão do céu e mar.Do barco distante, uma criança acena com tranquilidade, apontando para o céu. Era ela.

...

Acordou subitamente, assustado e surpreso com o sonho revelador. Seria um sinal dos céus? Ou mais uma pegadinha de sua mente confusa? Percebeu que estava deitado sobre algo macio; As palhas do casebre, destruído pelo fogo e pela chuva, protegeram seu corpo coberto pela areia da tempestade.

O primeiro raio de sol da bela manhã acalentou seu rosto ferido, dando uma passageira sensação de conforto e bem estar. Tentou se levantar, mas suas pernas não responderam.Tentou mover os braços, que também não deram sinal de vida. Sentiu-se paralisado, sem forças para reagir.

Em sua mente, única parte de seu corpo ainda ativa, ecoou a reconfortante lembrança daquele sonho, do barco e da imagem da pequena criança. Completamente esgotado, perdeu os sentidos, caindo novamente em sono profundo, sem se dar conta de que estava vivo e a esperança ainda estava ao seu lado.

Dia 6, tarde. O tronco da verdejante palmeira, antes belo e frondoso, estava agora no chão. Suas folhas, quase estendidas em reverência na direção do céu, acabaram vencidas pela força da natureza e agora beijavam a areia. Após a tempestade, sempre vem a bonança, já dizia o ditado. Mas, a julgar pelos estragos do último temporal, a parte boa da história iria demorar a ser escrita.

Naquela ilha inóspita e desabitada, afastada do resto do mundo, tudo parecia estar em constante transformação. O que antes era tranquilidade, agora lembrava solidão. A natureza viva e selvagem tentava se recompor, mais uma vez.

Do antigo casebre restaram algumas palhas, que escaparam da fúria do fogo. E justamente ali estava o reflexo mais claro da luta pela sobrevivência: um ser humano desolado, inerte, que ainda respirava. Lenta e vagarosamente.

...

Toda aquela mudança brusca de ambiente afetou também o ciclo das marés na enseada. O mar parecia estranho naquela tarde; As ondas mal tinham forças para chegar a areia. Um caranguejo vagava em círculos pela praia, explorando o ambiente desolado. Pássaros analisavam as novidades, voando alto no céu. Alguns peixes agonizavam na areia, em seus últimos suspiros em vida. E o ciclo da vida tentava seguir seu curso. Deitado a poucos metros o mar, aquele homem sem movimento não abria mais os olhos, mas ainda podia ouvir o som triste das ondas. Não conseguia pensar em nada além do sonho, e de sua Maria... Sua estrela que surgiu tão bela, e partiu tão cedo. Ele sentiu que também estava partindo, aos poucos. A vida se esvaia de seu corpo a cada sobe e desce do mar. Sua hora estava para chegar...

Dia 6, noite.

Veja hoje no Jornal da noite: Cidade volta à normalidade após alagamentos

Após o fim das fortes chuvas que alagaram vários pontos da cidade, as águas começaram a baixar. Segundo informações da Defesa Civil, o estágio de normalidade foi atingido na manhã de hoje, depois de uma última noite em estado de atenção. A chuva e ventos fortes provocaram muitos estragos em vários bairros da cidade, com desabrigados e feridos. Não há relatos de mortos até o presente momento.

Continuam as buscas por indivíduo desaparecido

O cachorro Biscoito amanheceu agitado no dia de hoje, e segue auxiliando os Bombeiros na busca pelo homem desaparecido na região do Morro do Alemão. Segundo informações do Comandante do Corpo de Bombeiros, ainda há esperança de encontrar o cidadão com vida. As equipes vão intensificar seu trabalho, que a partir de hoje será facilitado pela normalidade do tempo e a redução do nível das águas.

Os Bombeiros e toda a população torcem para que Biscoito possa encontrar seu dono, e essa história tenha um merecido final feliz.

Mais notícias e novidades a qualquer momento no plantão de notícias, ou em nosso Jornal da Manhã.

Na madrugada fria e inerte, os que tinham teto e abrigo poderiam agradecer pelas noites tranquilas. Mas esse não era o caso do cachorro que vagava pelas ruas sem rumo, na incessante procura por seu dono.

Biscoito não se entregava, não queria dormir. Estava agitado, andando em círculos pela rua, correndo atrás do próprio rabo.

...

Ao perceber um feixe de luz iluminar seu caminho, parou e farejou por alguns instantes. Resolveu seguir a trilha azulada, talvez por uma intuição ou sexto sentido que só os animais sabem ter. Sua perspicácia o levou até um grande prédio vermelho, com dois caminhões e uma picape estacionados em frente. O cheio da borracha dos grandes pneus o fez parar para um merecido descanso (e um xixi básico).

Na portaria, um homem de farda assistia televisão, na vigília atentados próximos chamados. Biscoito analisou a cena calmamente, cheirando a situação a sua volta. Ao perceber um flash azul saindo da tela da televisão, emitiu um latido alto e estridente.

Conseguiu chamar a atenção daquele homem, que prontamente verificou sua situação. Após ser reprimido por molhar os pneus das viaturas, Biscoito logo ganhou água, comida e um abrigo para passar a noite, nos fundos do Corpo de Bombeiros.

Continua...

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