4. Sobre o monstro Ao Ao (parte 1)

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Porãsy acordou com o despertador do celular tocando. Esticou o braço, o alcançou e desligou. Lembrou-se de que era domingo e não teria aulas. Por que não desligara o despertador do celular no dia anterior? Se martirizou.

Virou-se na cama cobrindo a cabeça, numa tentativa de fugir da agonia que sentia ao visualizar as paredes de plástico do quarto, sem nenhum ânimo para se colocar de pé. Mas o barulho de conversas do lado de fora, na extensão coberta de sapé, e o cheiro de café recém coado fez com que ela se levantasse.

Colocou uma bermuda e uma camiseta, calçou um chinelo e foi para fora, onde a mãe terminava de passar o café. O pai estava sentado em uma cadeira e o casal conversava. Ela viu um bolo cortado em uma vasilha sobre a mesa que lhe pareceu delicioso. Também tinha pão, café, leite e chocolate.

— Bom dia, filha — o pai a cumprimentou.

— Bom dia, pai. Bom dia, mãe — respondeu, já mais animada.

Porãsy pegou uma xícara, colocou leite quente, café e pegou um pedaço de bolo. Sentou-se em um banquinho de frente para o pai e começou a comer, quieta.

Pensou nas narrativas do avô, que ouvira no dia anterior e em outros momentos, sobre Kerana e os seus sete filhos: os sete monstros lendários. Ela sempre achara a história incrível, mas daí a acreditar que ela acontecera de verdade, isso já era demais.

O seu avô acreditava mesmo que fosse tudo real, cada fato, cada acontecimento, cada ser, cada pessoa. Falava inclusive que alguns dos filhos dela e seus descendentes eram fáceis de serem vistos em florestas virgens, campos, montanhas e nas águas. Desde então, Porãsy ficou com um pé atrás. A história era incrível e ela a achava a mais espantosa de todas as estranhas histórias que já tinha ouvido, mas não tinha como ser verdadeira, de forma alguma.

E, então, a menina constatou, como a mãe também já constatara e não se cansava de repetir, para a tristeza dela, que seu avô não estava muito bem. Porãsy pensou que talvez ele estivesse ficando caduco, isso na melhor das hipóteses. Só que ele era muito novo, ainda, para estar caduco, e muito consciente de todas as coisas, o que deixava Porãsy ainda mais confusa.

Após o café, saiu, dirigindo-se devagar para a beira da estrada. Caminhões passavam quase que o tempo todo em corrida desabalada. Ela tinha medo dos caminhões e dos outros veículos pesados, por causa das criancinhas do local. Tinha receio delas saírem no asfalto e serem atropeladas ou mesmo desses veículos virem para cima delas. Coisas assim aconteceram em outros acampamentos indígenas.

No entanto, antes que pudesse se distanciar, viu o avô sentado. Lá estava ele, debaixo da mesma árvore, mais uma vez com a cuia de chimarrão nas mãos. Ela foi aonde ele estava e sentou-se perto dele.

— A bênção, . — Eles tinham o costume de pedir a bênção para as pessoas mais velhas da família.

— Deus te abençoe, filha.

— O que foi, ? Tá aqui sozinho de novo.

Ele a olhou por uns segundos, como que avaliando se devia expor a ela o que estava pensando. Respirou fundo e, só então, falou:

— Minha neta, no ano passado um dos monstros lendários, o Aô-Aô, o pior de todos, foi visto na Aldeia Pirakuá. Os homens de lá estavam caçando e o viram com um bando de seus filhos. Tiveram que correr e subir em palmeiras, onde passaram a noite, até que a criatura fosse embora.

Porãsy ficou quieta. Por instantes, se arrependeu de ter ido ver o avô. Às vezes, só às vezes, o achava repetitivo demais. Ele insistia demais naquela história.

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora