Uma figura sem alma

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"Bebamos! Nem um canto de saudade!

Morrem na embriaguez da vida as dores!

Que importam sonhos, ilusões desfeitas?

Fenecem como as flores!"

Álvares de Azevedo


E no fim de tudo, Claus se perguntou: O que é a vida, no frio da noite? Apenas uma solitária luz de um poste, iluminando o breu do mundo? Ordinária, intrusa, que o desafia a olhar para ela sem dó nem piedade?

Mas seus olhos vermelhos e ofuscados logo avistaram uma imagem. Uma figura feminina, ao longe. Camila? Talvez sim. Ou não. Melhor ser, pois aquelas mãos quentes sentiam sede de tocá-la, ardilosamente, por dias e dias. Mas permaneceram estáticas por toda sua breve vida suicida.

O silêncio momentâneo dizia o que ele já sabia: que a noite sempre é fria e o silêncio, absoluto. Apenas o cricrilar dos insetos madrugadores, teimosos fazendo festa em meio ao caos noturno, ousariam mudar este universo. Cri, Cri, Cri... Mas ela... Muda! Ah, ela logo teria que ter alguma reação, responder ao olhar e ao quase toque daquelas mãos quentes, por bem ou por mal. Bondade ou maldade, talvez ela pudesse até ter gostado daquilo tudo, ou quem sabe até tentasse fugir para longe... Quem sabe? Deus lá sabe... Mas... Perder aquela oportunidade? Nunca, jamais! Boa noite... Boa vida... Boa partida, vida bandida...

Antes de tocá-la, um pensamento vazio ecoou pelo ar. Foi o estopim para o fato que mudaria a vida de Claus. Ou que mudou tudo, pra pior. Sem pensar, ele tentou correr até ela. Sim, ele sabia que ela viveria rodeada de machos, sedentos por algum contato sórdido com seu corpo, coberto de finas roupas... Todos queriam ter aquele prazer que agora seria só dele... Seria preciso? Talvez. Mas ela não reagiu. Continuou ali, parada.

Ele aproximou-se, cambaleando. Suas pernas se embaralhavam. Não, ele não queria cair ao chão úmido, mas seu corpo ainda dançava, enquanto os braços sustentavam seu equilíbrio delirante, embalado pelo éter de uma quase vida alcoolizada. Ele levantou então a cabeça e olhou as estrelas do céu, perdido em devaneios. O cricrilar dos insetos o fez voltar à realidade, tocando a melodia da noite. Espera. Agonia, terror... Remoendo sua ira, ele olhou nos olhos vazios daquela figura, e sentiu-se livre para seguir adiante em seus planos delirantes, à lá Alice no país do que ele nem se lembrava mais... Ela, ali, não seria de mais ninguém além dele. Nem ontem, nem hoje. Ela seria sua glória...

No momento em que aproximou seu corpo para concretizar seus desejos, Claus esbarrou estupidamente em uma parede de vidro. Foi o fim da motricidade do caos, mantendo a tranquilidade daquela figura estática e sem alma.

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