Capítulo 7 - A Rosa Negra

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Depois de muita insistência, eu finalmente consegui ver Clahel uma segunda vez naquele dia.

Entrei no quarto enquanto Laureana franzia a testa e suspirava. Ela não queria que eu estivesse ali, nem ela, nem minha mãe, nem minha irmã. As três tinham medo de que eu tentasse curar Clahel. Eu também tinha medo. Medo da Rosa Negra. Que doença era aquela, por que ela estava aparecendo e matando tanta gente? Eu não fazia ideia. Só sabia que era isso que Clahel tinha.

Eu queria ajudar minha prima, queria muito, mas não sabia como. De repente, podia tentar fazer algo por ela e matar nós dois. Sempre havia essa possibilidade. Tirar as manchas nunca era fácil, e havia tantas... "A gente não sabe o que o problema da Clahel pode fazer com você, El", minha mãe tinha dito, dividida entre a segurança do filho e a cura da sobrinha. "Você já não anda bem. Seu pai está naquele estado. Vamos com calma, sim?".

"Vamos com calma". Só que Clahel tinha cinco anos. Cinco. E quando eu a vi de novo, deitada naquela cama, senti vontade de gritar. Lágrimas caíram dos meus olhos como folhas no outono, mas eu as sequei rápido, embora ninguém estivesse prestando atenção. Quem haveria de notar meu choro quando havia uma criança naquele estado? Nunca tinha visto coisa igual. Centenas de manchas, milhares, talvez, cobrindo o corpo da minha priminha, grudando-se à aura e à pele dela como fuligem. Mal conseguia enxergar por debaixo daquela mortalha escura que, graças à Deusa, só eu podia ver, mas cujos efeitos eram claros.

Meus tios estavam ali, quase alheios. Pareciam dois fantasmas, com olhos fundos, exaustos demais para falar. As cortinas de seda azul do quarto pareciam escuras e fúnebres, o incenso tinha cheiro de cinzas. Fiquei com um gosto ruim na boca e o estômago embrulhado pelo resto do dia. Clahel era a única filha dos meus tios. Minha prima. Aquela garotinha linda que me chamava de "El-El" e que gostava de sentar nos meus ombros para ficar "beeeem alta". Eu já tinha curado tantos em Silena, tinha tirado manchas, visto sombras, sentido corações partidos... me habituara aos monstros debaixo da cama – os meus nunca tinham ido embora. Mas, logo agora, queriam que eu esperasse.

"Tortinha...", falei, me aproximando de Clahel, mas não consegui terminar. Nem poderia, porque Laureana estava ali, me vigiando. Só que eu pensei. "Vou te ajudar, Cla-céu. É uma promessa, linda".

Uma promessa. Eu esperava poder cumpri-la.

Eventualmente, falei com minha mãe e com Laureana. Elas confirmaram minha suspeita. A pele de Clahel tinha começado a apresentar algumas marcas em um formato irregular que lembrava vagamente o de uma flor escura de pétalas abertas. Eu não tinha nem visto isso, por causa das manchas, mas meu coração doeu ainda mais quando elas me contaram. Maldita doença. Tínhamos começado a ouvir rumores sobre ela cerca de oito meses atrás. As histórias, em sua maioria de viajantes, davam conta de uma praga fatal que provocava febre, vômito, muita dor de cabeça e marcas escuras pelo corpo. Algumas pessoas demoravam meses para manifestar os sintomas mais agudos e perecer, outras eram levadas em dias. Como nunca tínhamos visto nada igual, passamos algum tempo achando que os relatos eram exagerados, produtos das mentes de marujos desnutridos e viajantes solitários. Porém, na feira da Lua Cheia do mesmo ano, os rumores se intensificaram. Meu pai manteve contato com minha avó por cartas e ela confirmou a existência da doença em uma primeira missiva; na segunda (a que eu li no dia em que ficamos sabendo do estado de Clahel), o tom era muito mais urgente. Minha avó afirmava que as coisas estavam saindo do controle em Lontar e gente estava morrendo aos baldes. Para piorar, as causas da Rosa Negra eram desconhecidas, e também o eram suas formas de contágio. Pairava sobre nós a ameaça de uma moléstia tão misteriosa quanto seu nome, mas o que eu realmente não entendia era por que a providência havia escolhido minha priminha para carregar um fardo tão cruel.

Nos próximos dias, Laureana exigiu sigilo absoluto de nós e de todos os noviços que souberam do caso, para evitar pânico. Minha conversa sobre o que eu tinha visto só serviu para que ela se convencesse ainda mais de que eu devia ficar longe. Eu obedeci, porém, minha mente não fazia nada além de reviver a imagem das manchas tomando conta da aura de Clahel. Será que eu realmente podia fazer alguma coisa? Se eu desmaiava tirando uma ou duas manchas, como poderia apagar todas aquelas?

Os três dias que se seguiram foram péssimos. Minha visão ficou descontrolada e eu não dormia à noite, só cochilava. Ouvia minha tia Elora chorando, mesmo estando longe, sentia o desespero de meu tio Laucian, sonhava com Clahel presa em um mundo de sombras... Minha mãe ficou quase o tempo todo com meus tios, e eu e Lyriel ficamos cuidando da casa e do nosso pai. Durante as noites insones, enquanto minha mãe ainda estava fora, eu ia até o lado dele, agarrava sua mão e pedia ajuda. "O que eu devo fazer, pai? Por favor, me mostre. Por favor, me dê forças. Me diga o que fazer".

E acho que ele disse, de certa forma. Na terceira noite de meu "afastamento" do templo, minha irmã voltou de lá chorando muito. Foi quando eu soube que não podia mais esperar e me livrei das dúvidas. Esperei Lily dormir e cambaleei, meio zonzo, até o templo. Laureana me viu. Disse que meu tio me tiraria dali à força, se necessário, e nem me deixou entrar no quarto onde minha prima estava. Mas não precisava. Eu sentia o cheiro da morte.

Não podia voltar para casa. Me sentei no banco do gazebo em frente ao templo e afundei a cabeça nas mãos, mordendo os lábios para não chorar. Clahel ia morrer. Ela ia morrer se eu não tentasse alguma coisa. Fechei os olhos. "Deusa, me ajude. Me ajude, por favor. Pai...".

Acho que dormi. Acho, não. Tenho certeza.

De repente, eu estava em um pesadelo. Vi Clahel presa em um lugar escuro, chorando e sozinha. Eu gritava por ela, mas ela não me ouvia. Continuava chorando, assustada, indefesa. Comecei a sentir meu coração acelerar e experimentei uma dor aguda. E então, eu ouvi a voz de meu pai me chamando três vezes.

Subitamente, eu estava de pé, no gazebo, olhando para meu próprio corpo adormecido no banco. Do meu lado, havia dois cisnes, um branco e um negro com as pontas das asas alvas. Eles começaram a falar com vozes suaves.

"Eladar... seu pai pediu que o ajudássemos. Ele não pode estar com você esta noite, mas nós podemos. Se quer fazer algo, precisa ser agora. Haverá consequências. Está preparado?".

Eram um homem e uma mulher, eu sabia. Podia sentir uma energia forte e maravilhosa irradiando deles. Tive vontade de me ajoelhar, mas ao invés disso, perguntei se podia mesmo salvar minha prima. Meu medo era tentar algo, não conseguir e piorar ainda mais a situação ficando doente.

"Você pode salvá-la, Eladar, se for o que você quiser. Vá. Caminhe até ela. Estaremos com você".

Eu sorri.

Meu corpo ficou no banco do gazebo, adormecido, mas meu espírito se moveu, leve como uma pluma. Era estranho, mas também era incrível. Entrei no templo e pude ver minha mãe e minha tia no salão, abraçadas, rezando em frente ao crescente de prata. Tia Elora tinha os olhos fundos e vidrados, como se tivesse acabado de receber um golpe forte no estômago. "Calma, tia. Calma". Ansioso, fui até o quarto de Laureana. Lá dentro estavam meu tio, ajoelhado perto da cama, e a sumo sacerdotisa, que observava Clahel com o rosto pálido. Ela sempre ficava assim quando alguém estava morrendo. 

Eu me aproximei, invisível, determinado a salvar Clahel, custasse o que custasse. E então, fiz. Chamei todas as manchas. Aos poucos, elas foram se desprendendo do corpo da minha prima e começaram a subir pelos meus braços como formigas invadindo um pote de mel. O cordão de prata que me prendia à carne passou a tremer, retesado. Ele queria me puxar de volta, mas eu ignorei seu chamado.  Não podia voltar ao meu corpo, precisava tirar as manchas. Naquela forma espiritual era muito mais fácil... tão fácil que em minutos eu havia sugado tudo, tudo, e minha querida prima brilhava como um pedaço de Lua.

Consegui ver Clahel se levantando, confusa, o rosto à beira das lágrimas. Vi o sorriso incrédulo e maravilhado do meu tio Laucian. Mas, de repente, senti uma pressão forte na altura do estômago, algo que nunca tinha experimentado... e fui arrancado dali.

Era como se eu tivesse sido sugado por um vórtice de escuridão. Mãos feitas de sombras me agarravam, vorazes, e me puxavam para baixo... para as trevas. Tentei gritar, mas dedos gélidos selavam meus lábios. Tentei me mexer, mas mãos pegajosas não deixavam. Levei algum tempo para entender. Eu estava preso.

Havia sido encerrado no coração da Rosa Negra.


Sombra e Sol (EM HIATO - autora teve bebê)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora