Capítulo 30

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Dizem que quando estamos perto da morte, nossa vida inteira passa diante dos olhos. Bem, ela não fez isso. Não quando eu tinha uma arma apontada para minha cabeça e um ódio macabro refletindo nos olhos do meu melhor amigo. Naquele momento, só o que eu conseguia pensar era que, em algum lugar fora daquela casa na árvore, Diogo poderia estar sendo enterrado por um monstro assassino em alguma cova rasa, sem eu sequer ter tido a chance de dizê-lo que seria papai.

Mas agora, ouvindo vozes abafadas que deviam estar vindo de alguma porta fechada e sentindo vagamente o cheiro de colônia masculina e sabonete de hortelã, minha vida finalmente cumpria sua missão de cruzar minha mente como um filme antigo.

Memórias vagas, adormecidas, em que eu me trancava no quarto depois de uma boa surra sem motivo, tentando controlar minhas lágrimas, pensando que minha vida era péssima e não tinha como piorar. Me lembrei dos dias em que eu ajudava meu tio em sua mercearia e passava horas conversando com Luara, ouvindo-a dizer que eu jamais devia reclamar do que estava passando, porque certamente alguém no mundo devia estar pior do que eu.

Me lembrei que no dia em que meu pai me ensinava a andar de bicicleta, um cachorro atravessou a rua na minha frente e eu não consegui controlar. Ao tentar desviar, a bike tombou para o lado e o resultado foi meu joelho e meu rosto bastante machucados.

Meu pai correu pra mim.

- É assim que aprendemos, minha filha. Os machucados e a dor fazem parte, mas você aprende a suportar.

Acontece que isso não era bem verdade. Não o tempo inteiro.

Essa dor infernal que eu sentia por exemplo... eu já devia estar acostumada com ela. Era a mesma que eu senti quando soube que meu pai me abandonou e quase a mesma que senti quando soube que eu nunca tive uma mãe. Ela devia ser familiar pra mim, mas agora parecia estar pior, mais intensa. Era como se o buraco que meu pai tivesse deixado dentro de mim resolvesse sugar toda a minha alma sem dó nem piedade.

Por um tempo cheguei a pensar que esse buraco tinha sido preenchido... mero engano. Ele ainda estava ali, a espreita, esperando o momento certo para se abrir e me dilacerar de uma vez.

Bem, o momento certo tinha chegado.

Ouvi uma porta se abrir e fechar de novo, um momento depois alguém estava segurando minha mão. Eu sabia que era uma mulher pela textura de sua própria mão, mas mesmo que a ideia de abrir os olhos e ver quem era fosse horrivelmente tentadora, eu continuei de olhos fechados, imóvel, como se estivesse dormindo.

Minha reação poderia ser explicada de várias maneiras. Eu poderia estar cansada, e simplesmente não queria conversa; poderia estar frustrada com os acontecimentos e resolvi me fechar para o resto do mundo, ou, mais provavelmente e com certeza a opção correta, poderia estar me apegando à ideia de que tudo não passara de um terrível pesadelo, e escolhesse desfrutar da esperança incubada por mais algum tempo.

Um sonho... é claro que não era sonho. Não tinha como ser. Cada detalhe estava visível e completamente nítido em minha mente. Cada minuto. Cada palavra.

Eu não podia mais me torturar por tanto tempo. Eu precisava saber o desfecho dessa história louca, então obriguei meus olhos a se abrirem.

Do meu lado, Sofia piscou várias vezes antes de conseguir acreditar que eu estava acordada.

- Luna! - E então se jogou sobre mim, me apertando tão forte que minha respiração foi incapaz de deixar meus pulmões.

Ela estava ali. Sempre estava. Nos momentos que eu mais precisava, de algum jeito, ela aparecia. Sempre.

Mas ninguém podia me culpar por desejar ver outra pessoa no lugar dela, e quando me dei conta de que tinha uma grande chance de eu nunca mais vê-lo, minha garganta se fechou.

Apostas do destinoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora