40. Adornado, quem é você afinal? (kunhã Rendy)

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Finalmente paro de correr. Estou cansada, exausta mesmo. Mas estou ainda mais com raiva. Raiva de tudo e de todos. Minha respiração está ofegante. Abaixo a cabeça, colocando minhas mãos nos joelhos. Inspiro e expiro. O coração está acelerado. A vista turva.

Desabo no chão sobre os meus joelhos. Fico assim por alguns momentos, esfregando fortemente as mãos pelas minhas coxas, como se isso pudesse provocar uma dor maior do que a que estou sentindo em meu coração. A pele fica vermelha. As mãos e coxas ardem pela força que empreguei. Fico assim, vagando perdida em mim por alguns instantes. O mundo em meu entorno não me faz sentido. Sequer percebo o ambiente.

Levanto a cabeça, afinal. Olho em volta e vejo a raiz de uma árvore. Me sento nela. Meus pensamentos são um turbilhão de coisas: a enfermidade pela qual passei e que as pessoas pensavam que eu estava enlouquecendo, a doença de meu irmãozinho e o quase falecimento dele, tantas outras doenças na casa grande, a caça e pesca que acabaram, o incêndio, o desaparecimento de meu pai, a doença e quase loucura de meu irmão grande, o clã canibal dos Jagwaretê Ypy e... Que dor... A morte de minha mãe. A pior coisa que já passei na minha vida, a morte da minha mãe.

Abaixo a cabeça de novo, agora apoiando-a sobre minhas pernas. As lágrimas escorrem quentes. Balanço a cabeça, subindo e descendo. Até que ponto o Adornado está envolvido nisso tudo? Será que ele está mesmo envolvido? Continuo com os movimentos da cabeça, as lágrimas continuam caindo. Gemo de dor. Soluço de desespero. Se o Adornado tem culpa, eu também tenho. Eu deixei ele entrar em minha vida, eu deixei ele ter acesso à minha família e à casa grande. Eu rejeitei o meu Járy, abrindo as portas ao mal quando renunciei aos objetos protetores que os xamãs tinham abençoado e me entregado. Eu abdiquei até da reza de cura que tinha recebido e eu não me perdoo com relação a isso. Tudo porque acreditei no Adornado, porque achei que ele estava me protegendo, estava apaixonado por mim, me amava...

Agora meus soluços são agudos, meu ser queima. A constatação de minha culpa e das consequências por ter acreditado e me apaixonado por alguém que nunca esteve apaixonado por mim me aperta todo o ser.

Minha mãe... Minha mãe... Até que ponto o Adornado nos atraiu a tudo isso como se atrai animais às armadilhas? Ele falou para eu ir onde Pa'i Sumé estava com meu irmão mais velho, e lá o Jagwaretê Avá quase matou meu irmãozinho e a mim. No entanto, ele salvou a nós dois... Mas depois fomos parar no território dos Jagwaretê Ypy, os mais cruéis canibais, e lá minha mãe morreu... Da pior maneira possível. Lá, quase morremos todos nós.

Choro desesperadamente. Balanço e balanço a cabeça para cima e para baixo, para cima e para baixo. Não sei no que acreditar. Não sei em quem acreditar. Droga de vida! Por que não morri quando fiquei doente? Por que outros tiveram que morrer? Por que MINHA MÃE teve de morrer? E onde está o nosso pai, afinal? Não consigo colocar os pensamentos em ordem, não consigo parar de chorar.

— Menina, menina.

Dou um salto para trás e caio com as mãos no chão, impedindo que minhas costas se estatelem ali. Adornado! O próprio. Finalmente, depois de umas duas luas sem aparecer, aqui está ele, na minha frente! Agora somente agora ele aparece de novo. Olho assustada para ele.

— Eu não queria que fosse assim, menina, eu não queria. – Ele fala comigo, se aproximando de mim, estendendo a mão para me ajudar a levantar.

Num ímpeto, me empurro para trás, levanto e me apoio no tronco da árvore. Não quero que ele me toque.

— Sai daqui! – quase grito. Minha voz treme.

— Não menina, não ainda. – E sua voz é doce demais, seu olhar lindo demais para que eu resista a ele. Meu coração dispara ainda mais. Minhas entranhas se revolvem todas.

— O que você quer? – pergunto angustiada, já sabendo que não conseguirei resistir a ele. Devo estar mesmo enfeitiçada. Isso, com certeza é feitiço.

— Calma, linda. Só quero conversar. Nós precisamos conversar. – E agora ele já está mais perto de mim. Aliás, perto demais.

Sinto o seu cheiro, o perfume da mata, das essências naturais, cítricas, doces. O inebriante perfume que ele exala entra em minhas narinas, tomam contam dos meus sentidos, aceleram meus batimentos cardíacos, aguçam meu corpo e me faz desejá-lo. Não tenho como fugir, como escapar. Estou recostada à árvore, e ele na minha frente, me impedindo de sair dali. Sua mão toca o meu braço, meus pelos ficam eriçados, meu corpo quente.

— Onde você esteve? Onde você estava por todo esse tempo em que permanecemos com o clã Jacu Ypy? Por que você não falou mais comigo? – pergunto sôfrega e ainda com raiva.

Puxo por minha respiração tentando enviar ar aos meus pulmões, porque meu corpo não dá conta disso automaticamente. Sei que Adornado percebe a minha agitação interna. Ele sabe dos meus sentimentos e do meu desejo por ele. Ele sabe que o quero mais que tudo. Talvez isso seja mesmo provocado por um feitiço que ele tenha colocado em mim. Mas agora eu não consigo mais raciocinar sobre isso. Tudo o que quero é o seu toque em meu braço, delicado e suave como está agora. Seu perfume me inebriando.

Ele se aproxima ainda mais de mim. Sinto sua respiração junto a mim. Seu corpo muito próximo. A mão vai em direção ao meu cabelo e o toca.

— Cresceu. – Ele diz e eu o olho inquisidora. – Seu cabelo cresceu!

Só então dou conta de que meu cabelo realmente cresceu e já está quase na altura do ombro de novo. Sua mão toma a ponta do meu cabelo, enrolando-o delicadamente em seus dedos. A outra mão apoia no tronco da árvore. Estou presa em seus braços. Nem se eu quisesse, teria como sair dali agora. E a verdade é que ... Não quero sair. Tudo que quero é ele, seu toque, seus beijos. Xe Járy, como senti falta dele! Como ele tem poder sobre mim!

Suas mãos vão em direção ao meu pescoço. Tomam-no, seus polegares acariciam-no. Ele está muito próximo. Sua boca muito próxima à minha, seus olhos nos meus e os meus perdidos nos deles. De novo não consigo respirar normalmente.

— O que disseram a você? – ele pergunta num sussurro sedutor. Tudo nele é envolvente. Cativante demais para ser natural – Disseram que eu te enfeiticei?

Olho para ele assustada. Ele sabe. Ele sabe o que falaram dele para mim. Como ele sabe? Ele sabe o que falam que ele me fez. Suas mãos me puxam para ele, seu rosto se aproxima, seus lábios tocam os meus e ele me envolve em um beijo. O seu beijo é quente, ardente, intenso. E mais uma vez, me deixo perder nele. Toco suas costas, deslizo minhas mãos por elas, sentindo cada músculo, cada parte dela. Ele se afasta um pouco. Só um pouco:

— Eu sei que eles dizem que eu te enfeiticei. Todos sabem disso: que eu enfeitiço meninas para destruí-las. – Suas mãos descem novamente por meus braços e chegam às minhas mãos. – A questão é: o que vamos fazer com relação a isso, moça? Porque eles têm razão!

Suas últimas palavras caem como uma pancada de um tacape. Como um soco em meu estômago. Como se ele me perfurasse com uma faca. Elas entram em meu ser e fazem estremecer todo o meu corpo. Trazem dor. Uma dor amarga, intensa, que me penetra até o mais interior de mim.

(Continua) 

(Bom, está aí. Agora sabemos o que o Adornado, verdadeiramente, fez com Kunhã Rendy. Mas e o que será que ele fará agora que ela também sabe disso? Será que ele vai mesmo destruí-la, e aos seus, como todos dizem? O ÚLTIMO capítulo deste livro vem aí. É só conferir).  

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Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora