DEGELO - Conto

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      Por ser um Pregador da palavra, fui ressuscitado.

Eles utilizam o termo 'reiniciado', mas tanto faz.

Paretástase. O nome do problema. Não o meu: morri ou penso que morri em 2.057, num acidente num quartel militar da União Europeia, onde eu era capelão. Uma explosão: só me lembro disso. Eles me relataram o resto: fui congelado numa câmara criogênica à espera de ser revivido, quando pudessem recriar in vitro órgãos para substituir os meus que foram comprometidos pela explosão.

Décadas se passaram. E eu, juntamente com uma dezena de outros militares que haviam sido congelados, ficamos à deriva no Tempo, esquecidos num bunker subterrâneo, sub-vivos apenas pelo fato de o complexo ser autogerenciado energeticamente, o que garantia seu funcionamento sem a interferência humana.

Mas voltemos à paretástase. Uma disfunção cromossômica, uma anomalia surgida no DNA alterado de toda uma cidade-estado. Efeito colateral causado por uma mutação induzida: para suportar as radiações gama, decorrentes da passagem do cometa Astianax C1b, em 2.129 o Naga Bei de Berlitz (um tipo de senhor feudal, comum nas cidades-estado e ligas citadinas surgidas na Europa depois do quase esfacelamento da civilização), resolveu alterar geneticamente toda a sua população, na época uns treze mil seres humanos, além de animais e híbridos. O objetivo era que eles suportassem as radiações sem a necessidade de trajes especiais, pois todo o tetra-amianto requerido para a fabricação de tais trajes estava alocado na China, e o Império Chinês, fragmentado e conturbado em seus próprios conflitos, não o vendia para ninguém. O pouco tetra-amianto que havia, era fruto de contrabando.

O Naga Bei imaginava, além de garantir a sobrevivência de sua população fora dos edifícios e túneis, melhor capacitar suas tropas para atacar alguns adversários mais indefesos.

O plano deu certo: as mutações mostraram-se eficazes, a radiação gama passou a ser de alguma maneira metabolizada pelos organismos. Mas apenas dois anos depois surgiram, como numa epidemia, os múltiplos casos de paretástase. As células mutantes passaram a rejeitar algumas monoaminas, substâncias/moléculas fundamentais para a manutenção da vida. Os cientistas do Bei não conseguiam reverter o processo inicial de mutação, e nem impedir o avanço da nova enfermidade.

As Ligas Hanseáticas (a caricatura que restou de um organismo governante transnacional na Europa), cientes do problema, resolveram instalar uma ainsterdome, um tipo esquisito de domo ou barreira tecnobiológica, capaz de marcar, rastrear e eliminar (via biodrones) qualquer forma de vida. Neste caso, todos os habitantes de Berlitz foram marcados e isolados, impedidos de deixar o perímetro da cidade. A mutação era retransmitida de pais para filhos, e era de ordem das Ligas que ela não se espalhasse. Também não era do interesse das Ligas ajudar como fosse a população de Berlitz; seu líder era considerado persona non grata entre seus pares.

Aos cidadãos cerceados de Berlitz, restou uma sinistra perspectiva: apenas aproveitar como pudessem os meses de vida restantes, enquanto eram aniquilados pela degenerescência genética.

O Bei, homem antes pragmático e estrategista de excelência, estranhamente entregou-se a um soturno definhar: passou a viver uma vida de dissolução, gastando a metade de cada dia nas druggegs, os 'ovos' de realidade supra-virtual, onde o usuário poderia viver 'outra vida'. Ao menos até lhe acabarem os créditos.

Num dia menos cinzento, ocorreu a um de seus assistentes, burocrata com sanhas de erudição e agora inundado pela melancolia, falar-lhe do Rabi, do velho Rabi rejeitado por Israel. A princípio o Bei escarneceu do assistente, pois afinal isso era hora de ressuscitar as velhas religiões? Poderiam fazer algo por eles?

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⏰ Last updated: Dec 27, 2022 ⏰

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