Necessário

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— Do que mais você precisa? — você me pergunta com todo o ar de superioridade

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— Do que mais você precisa? — você me pergunta com todo o ar de superioridade.

Eu só sei do que já aconteceu e do que precisei enquanto você ficava ao meu lado fingindo que estava ali para alguma coisa. Eu precisei ter duas gripes, ir ao posto de saúde por obrigação, receber a medicação de sempre em ambas as vezes e não te encontrar para me buscar na saída. Precisei levar o irmão mais novo da minha amiga para passear, me irritar com as crianças e não te ver nas redondezas do parque. Precisei limpar a casa inteira quando a visita ligou dizendo que chegaria em dez minutos. E te vi aparecendo depois com mais inconveniência que aqueles viajantes. Precisei organizar uma festa surpresa no seu aniversário para depois nunca me dar presentes. Precisei reprovar duas vezes no vestibular e desistir de uma faculdade depois que finalmente passei, até aí foi só para aprender a não esperar muito das coisas que acho que vale a pena esperar. Então precisei esquecer a carteira e só perceber isso na porta da boate, quando eu não a encontrei para pagar minha entrada, e precisei aceitar ajuda do cara estranho que passou a noite inteira tentando me beijar como retribuição dos vinte reais de open bar. Depois daquela noite, precisei torcer o pé na entrada da sala do gerente, no dia da minha entrevista de emprego e aprender, na raça e no imediato, a controlar o nervosismo com uma piada. Precisei chorar cinco ou seis vezes por você, depois de tudo, até decidir seguir em frente e depois desabar em choro mais uma vez, só para matar a saudade. Precisei pegar o ônibus errado duas ou três vezes, dormir no ônibus certo e passar reto pelo meu destino, e enfim notar que eu ficava perdida demais sem seus pseudo-cuidados. Aliás, sobre o destino, eu precisei andar por todos esses caminhos tortos para numa sexta-feira de manhã decidir ir à padaria comprar pães doces e te ver. E você me ouviu até agora? Eu já tinha passado por todas essas coisas desastrosas. Precisei me apaixonar por você outra vez, como me apaixono por quase todo cara com um sorriso bonito que não sei o nome. Mas mais intensamente. Precisei ouvir um oi. Como da primeira vez, precisei te conhecer melhor e te ligar duas vezes por ansiedade de te encontrar. E precisei desejar profundamente o recomeço de tudo.

— Eu sempre fiz tudo por você, do que mais precisa? — e você está perguntando outra vez, irritado.

Esse seu tudo me deixou tão vazia, que custo a acreditar. E por agora, eu precisei pensar em como eu era antes de você. Precisei dizer que precisava fazer o que eu costumava gostar de fazer, sem me importar com qualquer interferência, nem que eu fosse a única jogadora acertando a bola no gol vazio. Eu precisei dizer vinte vezes o quanto não gostava de flores e receber uma rosa no dia do meu aniversário. Eu precisei ir à psicóloga desabafar sobre você não ter aparecido no aniversário do ano seguinte. Precisei dizer a minha família que estávamos bem, mesmo sentindo uma dor incômoda no fundo do peito, coisa de quem mente sobre sentimentos, coisa clichê de sofreguidão. Eu precisei receber três ligações estressantes até parar de atender. Precisei sair para espairecer e entrar outra vez na padaria para comprar pães doces e sair de olhos fechados para não conhecer mais ninguém, para não me apaixonar outra vez. Precisei ter medo do amor. Eu precisei avisar a mim que tudo deveria ter um final, pois sempre sou a última a saber do que eu realmente quero e a primeira me frustrar com esses quereres pela metade. Precisei não te ver mais, evitar seus pais, seus amigos, seu local de trabalho, sua universidade, sua rua, seu carro, sua músicas preferidas, os filmes que viu comigo, o cinema do shopping, e uma vida inteira dentro de pequenos acontecimentos. Precisei ouvir essas suas perguntas para buscar respostas, explicações, dizeres e ver o tanto que já foi necessário nessa minha existência para não me render mais.

— Eu preciso achar caminhos certos dessa vez — respondo, por fim.

Você precisou não entender coisa alguma para compreender que não sou mais quem você conheceu. Que, na verdade, nunca fomos quem achávamos que éramos. Que apenas precisávamos ser aquilo para não desistirmos tão cedo. Mas as necessidades se descarregam depois de tanto tempo acumuladas e o que era preciso se esvai. Não precisamos mais de nós.

— Certo.

— Boa noite — me despeço.

— Boa.

— Boa sorte — digo.

— Obrigado — você diz e anda sério para fora da casa, da minha vida, de tudo o que foi necessário para aprender mais essa coisa curiosa sobre as pessoas: só sorriem enquanto você dá a elas o que precisam.


Blues MudoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora