8.

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Gérbera depositou a Bíblia sobre a escrivaninha ao lado da cama e apagou a luz do abajur. Salsicha jogava vídeo game no quarto 70 e tentava não se exaltar ao xingar o fracasso de seu time. Leôncio roncava alto, os estudantes nos dormitórios ao lado completamente acordados e incomodados. Rose disfarçava o exemplar de "Cinquenta Tons de Cinza" com o travesseiro enquanto a Irmã Flora orava, ajoelhada, ao lado da cama. As gêmeas Luisa e Luana faziam uma faxina no quarto, o que acontecia apenas uma vez por mês. Eu e Felipe estávamos sentados, um em cada canto do banco, enquanto ele se declarava (para mim?).

Isto é o que cada um estava fazendo no momento em que Maia Campos - sim, agora eu sabia o sobrenome dela - riscou um fósforo e o jogou sobre uma poça de álcool no chão do dormitório 56.

Todos para a praça de alimentação! Todos os estudantes devem ir imediatamente para a praça de alimentação! — um bombeiro berrava continuamente pelo alto-falante. As chamas já estavam contidas, mas a fumaça se espalhava por todo o prédio.

Assim que nos reunimos no local indicado, pude reparar no grande número de estudantes que aquele colégio tinha. Pouquíssimos ainda estavam com o uniforme, a maioria vestida com roupas neutras. Fiquei caçando Maia no meio daquele amontoado de adolescentes, mas nem sinal dela. Será que ela estava dentro do prédio? Será que o quarto 56 fora abrigo para mais uma suicida?

¿Estás bien? — Jorge apareceu eufórico por trás de nós, segurando o ombro de Felipe.

— Estou, Jorge. — Felipe bufou, segurando o maço de cigarros no bolso, inquieto. — Eu e Bernardo estávamos limpando a igreja. Bem longe dessa bagunça toda.

— Fiquei preocupado com você.

— Obrigado — respondeu Felipe, depois de uma longa pausa.

As gêmeas chegaram logo em seguida, com a apuração quase completa do que estava acontecendo. Os quartos 54 e 58 tiveram algumas danificações, mas nada muito grave. Oito estudantes estavam na enfermaria porque passaram mal com a forte fumaça, mas somente um permanecia inconsciente. Os móveis do dormitório 56 se reduziram a objetos inutilizáveis.

Seguindo as instruções dos bombeiros, os alunos afastaram todas as mesas da praça de alimentação, enquanto os funcionários carregavam centenas de colchões para dentro. Por causa da fumaça, todos teríamos que dormir naquele local. Esta informação pareceu excitar alguns estudantes, mas as manifestações de contentamento não foram sequer disfarçadas quando anunciaram que as aulas do dia seguinte estavam suspensas. A boa notícia não me fisgou, eu só conseguia pensar no possível paradeiro de Maia.

Os bombeiros responderam mais algumas perguntas enquanto os colchões eram alocados por todo o piso branco da praça. Não disseram nada sobre a origem do incêndio, o que resultou em várias teorias de que o espírito de Anita teria causado aquilo. Gérbera ordenou que todos os estudantes orassem antes de dormir, conduzindo a oração no alto-falante.

O meu colchão era tão fino que eu podia sentir o chão gelado contra minhas costas. Leôncio jogou a luz da lanterna na minha cara assim que fechei os olhos. Resmunguei enquanto ele seguia para os próximos estudantes. O chão tão próximo ao meu corpo sonolento me trouxe lembranças.

Aos doze anos, eu, meu pai e meu primo fomos a uma cidade no sul para acampar. Todo ano, ele realizava uma tentativa vaga de reaproximação que acontecia próxima ao período em que revistas de empreendimento visitavam nossa casa para entrevistá-lo. Na entrada do campo, havia um chalé administrativo, todo de madeira e muito mais confortável que as barracas do lado de fora.

A Última Gravata VermelhaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora