CAPÍTULO 1

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Não sei dizer ao certo, quando tudo pareceu ficar vazio, só sei que, de repente minha vida deu um giro de cento e oitenta graus. 

É incrível perceber o que uma mudança pode fazer na vida de uma família e, consequentemente na minha; mas não quero e não vou reclamar dessa nova etapa ainda desconhecida.

Também não sei do que sentirei mais falta... se dos sons e cheiros dessa cidade urbana, agitada a todo instante, ou se das memórias mais felizes com meus amigos.

Enquanto minha cabeça girava num vai e vem entre o antigo e o novo, vivendo recordações, ouvi passos no corredor, era Melissa, minha irmã.

— Está pronta? — perguntou ela, abrindo apenas uma fresta da porta.

— Estou — respondi baixo, quase que de forma inaudível.

Então ela entrou, pegou na minha mão e olhou em meus olhos.

— Aline, sei que parece difícil ter que começar uma nova vida lá no Rio de Janeiro. A igreja tem várias pessoas legais que estão passando pela mesma fase acadêmica que você.

Seus olhos esverdeados vieram de encontro aos meus, me fizeram refletir na chance que eu deveria dar a mim mesma. Antes que eu respondesse sua recomendação, mamãe nos assustou com um grito vindo do primeiro andar.

— Meninas, podemos ir?

Fiz questão de olhar para tudo que estava ao meu redor, para obter boas lembranças do aconchego que vivenciei aqui durante dez anos.

— Vamos lá, o dever nos chama! — Melissa disse tocando em meus ombros.

Ao fechar a porta do quarto, a escuridão dominou o corredor e descemos as escadas de madeira rangente devagar. Interessante que se fosse anos atrás, esse cenário e clima nublado seriam perfeitos para papai e Melissa me colocarem medo. Eles eram experts em criar histórias de suspense quando acabava a luz no bairro.

Eu desconhecia os planos que meu pai tinha para a nossa casa, então era provável que ela ficasse por um tempo fechada. Ainda conseguia sentir o cheiro das árvores que cercavam a rua. Esperava que esse cheiro trouxesse alegria para o coração dos futuros moradores.

Passeei meus dedos sobre o corrimão de madeira, estavam polidos, pensei seriamente em ter um desses quando tiver minha casa e minha família. Foi tudo que consegui sentir no mais profundo do meu ser quando cheguei à porta de entrada — agora minha saída e despedida final.

Queria passar por todo o processo em silêncio. Queria preservar cada detalhe em minha memória; por isso me preparei ao escolher com cuidado a roupa que usaria para a despedida: uma blusa rosa bebê que ganhei da minha irmã, saia jeans com botões ferrugem, tênis branco e jaqueta jeans. Uma boa escolha que combinava com o clima daqui de São Paulo, mas péssima para o Rio de Janeiro de quarenta graus.

— Pegaram tudo? — papai perguntou quando chegamos na calçada.

A porta detrás da nossa Toyota estava aberta, e mamãe aguardava quietinha, bem acomodada no banco da frente.

— Sim, pegamos — Melissa respondeu por nós duas.

Ela entrou depois de mim e fechou a porta.

Como estava cedo, oito horas da manhã no meu celular, papai não ligou música no carro, para a minha tristeza porque seria o momento propício de eu me sentir num clipe de música triste, onde chove e a moça fica olhando para o nada. Meus músculos faciais estavam cansados de sono e eu só queria ficar descansada no meu canto, escorada na janela — para dar uma última olhada na mercearia que acabamos de passar. Eu comprava com desconto uma água com gás que só vendia lá. Na cafeteria ao lado, eu e minhas amigas conversávamos sobre nossos crushes de cinema e questionávamos porquê em nossa igreja não haviam rapazes tal qual nossos atores preferidos. Uma lástima, dizíamos.

— Vou ligar o ar condicionado, podem fechar a janela — papai comentou e assim que terminou de falar, começou a chover.

Dias de chuva como esses ocorriam com frequência na cidade, tanto que já havia me acostumado. Eles me lembravam da escola e de como era gostoso a volta para casa. Sentia cada pingo cair sobre meu moletom surrado de uma semana inteira de aulas. Pensar sobre isso me comovia, mas a fase escolar passou.

Quando entramos na estrada, meu corpo levemente virou para trás e vi as casas e edifícios se esvaírem. Voltei meus olhos para frente e fechei todos os botões da jaqueta, respirei fundo e o ar gelado queimou minhas narinas. Senti um anseio, queria que tudo ficasse bem ao final. Não chovia só lá fora; dentro de mim também. Fechei meus olhos lacrimejados e adormeci antes de terminar minhas palavras de oração.

Deus Me Deu Você  (Degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora