01.2 | ou ❝a cidade não é a mesma sem você!❞

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Terminei de me arrumar e desci para o andar térreo para o café da manhã. Só minha mãe e meus novos "irmãos" estamos à mesa. Sentei-me na cadeira mais afastada e comecei a passar mel em uma torrada. Ninguém se atreveu a puxar assunto comigo. Mamãe se despediu de mim com um beijo em minha testa ao sair.

Melhor assim.

Terminei o café, peguei minhas coisas e desci até a garagem. Tentei não parecer alarmada quando Zacarias, o filho mais velho, se sentou ao volante do carro preto à minha frente. Eu já sabia que em Vitória os adolescentes dirigiam, embora fossem menores de idade.

Então entrei no carro, notando que nenhum dos garotos me deu bom dia. Devia ser por conta da minha cara de poucos-amigos. José, o mais novo, se sentou no banco do carona, e eu fiquei encarando a nuca dos dois. Os irmãos se pareciam muito entre si, ambos altos, de pele oliva, embora o Zé fosse mais bronzeado. As diferenças não paravam por aí. Zaca era magrelo e usava muito gel, enquanto o Zé era corpulento e quase careca, de tão rente que era seu corte de cabelo.

Pelo pouco que eu conhecia dos irmãos, eles eram opostos perfeitos. Zé era atleta, estrelinha do time de futebol da escola. Aparentemente, ele aparecia com uma namorada diferente toda semana.

O Zaca era do tipo intelectual e tinha uma namoradinha irritante, a tal da Andressa. Ela era igualmente obcecada pelas próprias notas e os dois ficavam o dia inteiro juntos, trancados no quarto dele ou na biblioteca da escola, trabalhando pra alguma droga de projeto pra faculdade (eles querem entrar pra o ITA ou algo assim). Ótimo, o geek obcecado e eu, na mesma casa.

Ao olhar pelo retrovisor, José estava monitorando a saída da minha mãe com o pai dele. De repente sua expressão se atenuou.

— Glória! — bradou José.

— Enfim sós! — Zaca fez uma dancinha desengonçada ao volante — A nova capixaba, está ansiosa para o primeiro dia de aula?

Me encolhi ao ser endereçada pelo gentílico de Vitória.

— Ou com medo de nadar no tanque dos tubarões mais mimados de Vitorinha? — continuou ele enquanto tirava o carro com habilidade da vaga de garagem.

— Você nem devia estar dirigindo. — resmunguei — É menor de idade.

— É essa a vantagem de morar em uma capital do tamanho de uma noz. — devolveu ele, animado — Ninguém realmente se importa com as leis de trânsito aqui.

A julgar pelo trânsito que se formava na rua, eu só podia concordar. Olhei de soslaio para Zé e Zaca, mostrando que não concordava com aquela atividade ilegal (mas não o suficiente para preferir usar o ônibus).

— Não se preocupe Zaca, ela só está se fazendo de difícil. — Zé me olhou, sorrindo de canto — Qual é Val, nós conhecemos você desde pequena. Você odeia agulhas, tomou mamadeira até os sete anos e tinha medo do Barney, O Dinossauro. Usar botas de soldado e toda essa maquiagem preta nos olhos não nos intimida.

Eu sorri involuntariamente, e os irmãos arregalaram os olhos escuros, em falso espanto. Gostei do deboche. Gostei que eles, ao contrário do pai, não me trataram como se eu fosse a vítima de uma catástrofe que estavam me abrigando por pena.

Ainda que fosse isso mesmo.

— Coturnos. — eu corrigi, ainda sorrindo.

— Ela sorriu! Alguém ligue para Ministério do Meio Ambiente! Temos uma montanha de gelo derretendo! — caçoou Zaca.

— Eu é que estou intimidada. — confessei, meio empolgada por ter uma conversa decente sem ser com meu pai por telefone — Não conheço ninguém nessa escola, todos devem ser há séculos.

— Nossa irmãzinha tem uma memória muito fraca, Zaca. — José construiu uma tensão, se virando no banco do carona para me lançar um olhar sabido — Acho que ela já se esqueceu do...

— Lucas! — exclamaram ambos ao mesmo tempo, dando um gritinho histérico, como se fossem garotinhas prestes a conhecer um ídolo pop.

Eu prendi a respiração.

Não podia ser.

— Lu...cas estuda na nossa escola?

Eu devia ter mesmo uma memória muito fraca, se tinha me esquecido do garoto que tinha salvado meu último verão em Vitória.

"Você acha que volta um dia? Para Vitória?", ele havia perguntado, vendo em meu rosto que, no que dependesse de mim, aquele lance seria apenas uma história de verão. Uma desculpa para que eu não precisasse ficar brincando de família feliz com minha mãe e meu padrasto. Eu contaria a Dolores quando voltasse para casa, e ela guardaria meu segredo. Os meses se passariam, e eu me esqueceria do garoto que eu havia conhecido no Aquário de Vitória, que me mostrara focas adestradas e as tartarugas recém-nascidas caminhando para o mar pela primeira vez.

Minha resposta para ele fora tão sincera na época quanto seria agora.

Não se eu puder evitar.

A perspectiva ter um pelo menos um amigo na escola nova deu um giro de cento e oitenta graus no meu humor.

— Lucas estuda na Leonardo da Vinci? — me enfiei no espaço entre os bancos da frente do carro para poder olhar para Zé e Zaca.

A escola Leonardo da Vinci era um antro crianças ricas e mimadas, e nada poderia estar mais distante do Lucas que conheci. Ele não tinha grana, trabalhava no aquário e andava de skate. Só me levava para comer em uns restaurantes super pagáveis até mesmo para nós dois.

— Achei que soubesse, mana. — disse Zaca — Pensei que ele fosse seu amor de verão ou algo assim.

— Lucas não é meu amor de verão! — neguei, ruborizando. Jurava que meu lance com Lucas tinha passado despercebido aos meus irmãos-de-mentira.

Assim como estava errada sobre Lucas estudar no Colégio dos Ricos.

— Você vai negar que vocês ficaram? — José debochou —Lucas está no mesmo ano que eu. Ele ficou suspirando por semanas depois que você foi embora.

— Para sua informação, nós não "ficamos", foi só um beijo. — me defendi, enfatizando as aspas imaginárias — E foi ele quem me beijou.

— Mas ele não beijou sozinho, né? — Zaca piscou para mim.

— Quando você deixou de ser o nerd bonzinho e virou esse... capixaba? Você não era um viciado em Super Mario que não se envolvia em fofocas? — apertei meus olhos pra ele, enquanto batia com meus livros no banco do motorista.

— É o meu último ano do Ensino Médio, querida, tive que superar o vício em Super Mario. — ele freou, tirando o cinto de segurança — Você está em Vitória, fofoca move essa cidade. E, sabe, se os capixabas te incomodam tanto, você está no lugar errado.

Ele abriu a porta do carro para mim e ficou me encarando.

— Tem alguém ali esperando por você.

Zé saltou do carro e foi direto se reunir com seus semelhantes, por falta de palavra melhor, do time de futebol. Zacarias logo encontrou a namoradinha irritante e fresca e saiu para o jardim, ansioso para praticar sucção matinal de faces.

E havia alguém esperando por mim. Encostado em uma caminhonete azul-celeste bem antiga, o único carro do estacionamento que não era daquele ano, ele vestia jeans amarrotados e um moletom amarelo por cima do uniforme. Seus cabelos castanhos caíam comportadamente sobre os olhos azuis de que eu me lembrava muito bem.

Sorrindo para mim, estava Lucas Avelar.

Acenei desconfortavelmente para ele, que veio na minha direção. Quando Lucas já estava perto demais para que eu pudesse correr, abriu bem os braços e falou:

— Vitória não é a mesma sem você!

E me abraçou, atraindo muitos olhares em nossa direção.

Onde Há FumaçaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora