Prólogo*

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Já era tarde da noite, eu sentia um pouco de frio, pois não tinha me lembrado de vestir um casaco. Estávamos voltando de férias pra nossa casa na cidade, a pista estava pouco movimentada, pois apesar de ser fim de ano, as festividades ainda não tinham acabado. Sempre voltávamos de férias antes das festas acabarem, assim pegávamos as estradas mais vazias e seguras.

Faltavam alguns quilômetros para chegarmos à divisa da minha cidade natal. Eu olhava pela janela a paisagem borrada pela velocidade e ao mesmo tempo nítida no horizonte. Nunca me cansava de ficar admirando a beleza da natureza. Enquanto meus olhos capturavam imagens meu pensamento voava longe, pensando em tudo e em não me focando em nada, apenas deixando ele livre.

Tocava uma música calma no rádio, meu pai dirigia e conversava com minha mãe sem tirar os olhos da estrada. Ele nunca desviava os olhos da estrada, assim como também nunca levou multa ou sofreu um acidente. Meu pai era ótimo no volante, isso ninguém podia negar.

Ele estava com seu rosto avermelhado por causa da insolação que sofreu por dormir em baixo do sol escaldante de duas da tarde. Sorte a dele que a mamãe o acordou antes que ele fritasse. Mas ainda assim ele tinha passado uns dias sofrendo por causa das queimaduras. Sua pele estava começando a escamar o que o deixava com uma aparência engraçada.

Eu parecia muito com ele, desde os cabelos ondulados, o porte magro e alto, até o jeito extrovertido. Ele tinha 1,70 de altura, era um homem religioso assim como minha mãe, logo eu também o era.

Minha mãe era o completo oposto de meu pai, sempre reservada, séria e de pouca fala. Fisicamente também, ela era baixa e um pouco acima do peso, tinha cabelos castanhos curtos e com mechas loiras e seu rosto era jovem para quem já passava dos quarenta anos. Aqui vale a expressão: os opostos se atraem.

Nossa família era composta de apenas nós três, e apesar de sermos unidos nem sempre tínhamos as mesmas ideias. Muitas vezes a religiosidade deles me incomodava. Pra eles tudo se resumia em Deus e no diabo. Coisa que não concordava. Sempre acreditei que nós humanos temos a maior parcela de culpa pelos nossos atos.

- Então filha, já está tudo pronto pra começar a faculdade? - minha mãe pergunta se virando e me dando um sorriso enquanto chama minha atenção.

- Está sim, só preciso me informar melhor o horário do ônibus pra não perder. — respondi resumidamente.

Satisfeita minha mãe vira de volta pra frente, e olha a estrada. Por um breve instante o carro ficou em total silencio, e isso fez o grito de minha mãe sair mais estrondoso. Ela vira o volante numa tentativa desesperada de desviar de algo pelo caminho, um som de pneus derrapando encheu meus ouvidos, meu pai tinha pisado no freio quando minha mãe tinha assumido o controle. E essas duas ações fez o carro capotar.

Ele girou varias vezes, e só parou quando bateu em uma arvore.

Dentro dele eu já tinha sido jogada contra todos os lugares possíveis e não conseguia me mover nem respirar. Todo meu corpo doía, e eu sentia algo escorrer na minha pele, provavelmente meu sangue. A cena se repetiu na minha cabeça, a estrada vazia, minha mãe gritando pra meu pai ter cuidado e girando o volante tentando desviar do nada.

Depois cenas desconexas da minha infância e de outras partes da minha vida preencheram meus pensamentos. Até que finalmente tudo foi fluindo para um vazio infinito, meus olhos escureciam e então tudo ficou preto.

Filhos de Abel (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora