Tentei me concentrar no livro aberto sobre a escrivaninha, mas as palavras dançavam na página, borrando-se a cada piscada cansada que eu dava. As frases sobre teorias de comportamento se embaralhavam, parecendo uma massa disforme de letras sem sentido. O marcador fluorescente amarelo escorregava entre meus dedos, girando nervosamente, enquanto eu tentava absorver ao menos um parágrafo inteiro sem perder o foco. Mas não conseguia.
A luz amarelada do abajur desenhava sombras suaves pelo quarto, tornando o ambiente acolhedor e silencioso demais, o que só parecia amplificar o barulho na minha cabeça. Um turbilhão confuso de pensamentos.
Suspirei, o peito apertado, sentindo a frustração crescer. Balancei a perna em um ritmo ansioso, como se o movimento pudesse dissipar o desconforto que pesava sobre mim. Meus olhos voltaram ao livro, mas a mente insistia em vagar. Não era cansaço. Não era a rotina puxada da faculdade, o estágio ou a falta de tempo para mim mesma. Eu sabia a verdade.
E o motivo tinha nome.
Falcão.
O rosto dele surgia sempre que eu fechava os olhos. A expressão dura, os traços marcantes, aquele olhar profundo que parecia enxergar mais do que eu mostrava. Não era só a forma como ele me olhava, mas como parecia estar sempre presente, sempre atento, como se pudesse sentir quando eu pensava nele — como se soubesse o que se passava aqui dentro.
Um arrepio subiu pelas minhas costas ao lembrar do timbre rouco da voz dele. A forma como falava baixo, controlado, escolhendo cada palavra como se soubesse o efeito que causava. Aquele sorriso torto, quase debochado, quando me pegava desconcertada demais para responder.
— Para com isso... — murmurei para mim mesma, irritada, fechando o livro com um movimento brusco.
O som seco ecoou pelo quarto, mas não diminuiu o aperto no peito. Passei as mãos pelo rosto, pressionando os olhos como se pudesse apagar as imagens que insistiam em voltar.
Eu não deveria sentir isso. Não era certo. Ele era o namorado da minha mãe. Ele nos acolheu quando mais precisávamos, deu a segurança que eu e ela nunca tivemos.
Mas ultimamente ele parecia estar em todos os lugares. De uma forma que me sufocava e, ao mesmo tempo, me puxava para mais perto.
A forma como me olhava.
A forma como parecia sempre saber onde eu estava.
Como se estivesse me vigiando.
Levantei da cadeira num impulso, o coração acelerado de uma forma que não fazia sentido. Fui até a janela, os pés descalços tocando o assoalho frio, que contrastava com o calor que ainda parecia grudado na pele, o mesmo calor que tinha começado desde aquele maldito churrasco. Desde as palavras dele.
Abri a cortina e a janela, sentindo a brisa morna da noite tocar meu rosto. O ar carregava aquele cheiro típico do morro: terra molhada, comida no fogo e o aroma de churrasco misturado ao funk abafado que tocava em algum ponto distante. As vozes ecoavam pelo espaço — risadas soltas, o som abafado de copos se chocando, crianças correndo. A rotina de sempre, aquela pulsação viva e caótica que deveria ser o suficiente para me distrair. Mas não era.
Me apoiei no parapeito da janela, os dedos apertando a madeira áspera enquanto tentava focar em qualquer outra coisa. Observei as luzes espalhadas pelas casas, piscando em tons alaranjados, algumas lâmpadas fracas tremeluzindo, os telhados sobrepostos formando um labirinto apertado de concreto e cores desbotadas. Tudo parecia normal. Familiar. Mas a sensação de estar sendo observada não saía do meu peito.
Meus ombros enrijeceram. A nuca coçou, um arrepio arrastando-se devagar pela pele como se alguém estivesse ali, me estudando, me analisando.
Virei o rosto, os olhos varrendo o terraço lá embaixo. E então, o vi.

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TODOS OS DEFEITOS DO AMOR
Teen Fiction[Este livro não retrata a realidade nua e crua das favelas, é apenas uma história fictícia com o intuito de entreter] ❝ Uma conexão obscena entre enteada e padrasto ❞ No meio do caos de uma invasão no morro, Falcão, dono do morro, salva Maria Vitóri...