Os dias continuavam arrastados, carregando aquela tensão que parecia ter se instalado entre mim e o Falcão. Eu tentava ignorar, me ocupar ao máximo com a faculdade e o estágio, mas parecia que quanto mais eu corria, mais perto ele ficava. O olhar dele estava sempre presente, mesmo quando não trocávamos uma palavra. Eu sentia.
Naquela tarde, voltei para casa com os ombros pesados, o calor do Rio grudando na pele como uma segunda camada. A pilha de tarefas da faculdade parecia um monstro prestes a me engolir, e a apresentação de um projeto do estágio que valia boa parte da nota estava me tirando o sono. Minha orientadora tinha sido clara: ou eu entregava algo impecável ou poderia dar adeus ao meu estágio no semestre que vem.
Entrei em casa e joguei a mochila no sofá, soltando um suspiro longo. Minha mãe estava na cozinha, cantarolando alguma coisa enquanto cortava legumes. O som da faca batendo na tábua tinha um ritmo quase confortante.
— Chegou cedo hoje, Mavi — ela disse, sem nem olhar para trás.
— Não aguentava mais olhar para a cara dos professores — respondi num tom cansado, passando a mão pelo rosto e afrouxando o cabelo preso.
— E esse projeto que você tá fazendo? Vai dar conta? — A voz dela carregava um tom de preocupação misturado com carinho.
— Vou ter que dar, né? Não tenho escolha. — Sentei na mesa da cozinha, encarando o vazio. — Mas eu tô ferrada com a parte de impressão. O arquivo é grande demais e precisa ser impresso em tamanho especial. Custa caro e...
— ...E a gente não tem grana sobrando — ela completou, virando para me olhar com um sorriso fraco.
Minha mãe sempre tinha aquela capacidade de entender as coisas antes mesmo de eu terminar de falar.
Assenti, forçando um sorriso de volta. Na verdade, nem queria trazer isso para ela. Minha mãe já fazia demais, e eu me sentia culpada cada vez que precisava de algo a mais.
— Vou dar um jeito. Nem se preocupa. — Tentei tranquilizá-la, mesmo sem saber como faria.
Antes que ela pudesse responder, ouvi os passos pesados do Falcão entrando pela porta da sala. Prendi o ar sem querer, como se meu corpo já tivesse uma reação automática à presença dele. Ele não falou nada de imediato, apenas largou as chaves no aparador e nos olhou, os olhos escuros indo direto para mim.
— Que cara é essa? — perguntou, sem rodeios.
— Não é nada — respondi rápido, levantando da cadeira. — Só coisa da faculdade.
Ele continuou me olhando por mais alguns segundos, como se não acreditasse em mim, e depois puxou uma cadeira, sentando-se com calma.
— Que tipo de coisa? — insistiu, com aquele tom baixo e firme que ele usava quando queria respostas.
— Um projeto. Preciso imprimir uns materiais em tamanho especial, mas vou dar um jeito. — Cruzei os braços, tentando soar despreocupada. — Já tá resolvido.
Ele não desviou o olhar. Era como se estivesse me analisando, procurando alguma brecha.
— Tá resolvido como? — Falcão apoiou os cotovelos na mesa, inclinando o corpo levemente para frente.
Soltei um suspiro frustrado, sentindo meu rosto esquentar. O que ele tinha a ver com isso? Não era problema dele.
— Eu vou dar um jeito, já falei. Isso não é da sua conta, Falcão. — Minha voz saiu mais dura do que eu pretendia.
Minha mãe parou o que estava fazendo e olhou de um para o outro, como se estivesse esperando o momento certo para intervir. Mas Falcão não se abalou. Pelo contrário, ele sorriu de lado, aquele sorriso irritante que fazia meu estômago revirar.
— Guarda a braveza pra quem merece, Maria Vitória. — Ele se levantou, pegou as chaves novamente e olhou para minha mãe. — Vou resolver isso.
— Resolver o quê? — perguntei, franzindo a testa.
— Esse projeto seu. Amanhã você vai ter tudo impresso. Me passa tudo depois, Liliane.
— Falcão, eu não te pedi nada! — A raiva cresceu no meu peito, e dei um passo para frente, como se pudesse alcançá-lo com as palavras. — Eu não preciso da sua ajuda.
Ele me ignorou completamente, já atravessando a sala em direção à porta. Minha mãe tentou falar algo, mas ele já tinha sumido pelo corredor.
— Ele só quer ajudar, Mavi. — Minha mãe disse num tom baixo, como se tentasse me acalmar.
— Eu não pedi! — gritei de volta, sentindo os olhos arderem de raiva e vergonha.
[...]
No dia seguinte, quando voltei da faculdade, encontrei um envelope grande sobre a mesa da sala. Meu coração deu um salto involuntário, como se já soubesse o que era. Peguei o envelope com as mãos trêmulas e o abri, encontrando todas as páginas do meu projeto impressas em papel especial, perfeitas.
— Falcão deixou isso pra você mais cedo. — Minha mãe apareceu na porta da cozinha, me olhando com cuidado. — Ele disse que você ia gostar.
Eu não sabia o que sentir. Raiva por ele ter se metido? Gratidão por ter me ajudado? Coloquei as páginas sobre a mesa, passando os dedos pelos cantos lisos. Era exatamente o que eu precisava, mas aquilo me incomodava mais do que eu queria admitir.
No fundo, sentia que ele tinha vencido. Mais uma vez, ele tinha me colocado em uma posição onde eu não podia ignorá-lo. Me afastei, deixando o projeto na mesa, e subi para o meu quarto, tentando organizar os pensamentos. A figura dele, o olhar firme e silencioso, a forma como ele resolvia as coisas sem pedir permissão, me rondavam como um fantasma.
Deitada na cama, respirei fundo, fechando os olhos. Por que era tão difícil lidar com ele? Por que a presença do Falcão me afetava tanto? Era como se ele sempre soubesse onde me encontrar, o que fazer para me deixar sem respostas.
"Eu não pedi nada", pensei, as palavras ecoando na minha cabeça. Mas, mesmo assim, ele tinha feito. E o pior é que parte de mim não sabia se queria odiá-lo ou agradecer.
Respirei fundo, sentindo a tensão nos ombros. Ele parecia sempre um passo à minha frente, resolvendo tudo sem pedir permissão. E, no fundo, era isso que mais me assustava.

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TODOS OS DEFEITOS DO AMOR
Teen Fiction[Este livro não retrata a realidade nua e crua das favelas, é apenas uma história fictícia com o intuito de entreter] ❝ Uma conexão obscena entre enteada e padrasto ❞ No meio do caos de uma invasão no morro, Falcão, dono do morro, salva Maria Vitóri...