Nos dias que seguiram, fiz de tudo para manter distância do Falcão. Cada vez que eu ouvia os passos dele ecoando pelo corredor ou sentia a presença dele na sala, meu corpo ficava tenso, como se um alerta invisível se acendesse. A raiva que eu sentia pelo que ele fez naquela noite ainda queimava no meu peito, misturada com a vergonha que insistia em me acompanhar toda vez que pensava na cena.
Passei a sair mais cedo para o estágio, voltando só quando tinha certeza de que ele estava ocupado ou fora de casa. No jantar, engolia a comida depressa, respondendo com monossílabos sempre que ele tentava puxar assunto. Minha mãe percebeu, óbvio. O olhar dela me seguia pela casa, como se esperasse que eu explodisse a qualquer momento, mas ela preferia não se meter. Já tinha aprendido que discutir com o Falcão era perda de tempo.
Foi numa tarde abafada, depois do estágio, que me vi sem escapatória. Entrei em casa e o encontrei na sala, deitado no sofá com as pernas esticadas, assistindo a algum programa qualquer na TV. Ele não olhou de imediato, mas, quando o fez, senti o peso daquele olhar atravessando a minha pele.
— Chegou cedo hoje. — A voz dele soou casual, mas firme, como sempre.
— Não tinha mais nada pra fazer — respondi rápido, evitando o olhar dele enquanto atravessava a sala em direção à cozinha.
— Mavi. — Ele chamou, a voz mais baixa, como se me desafiasse a ignorá-lo.
Parei na porta, segurando o fôlego por um instante. Eu podia ter continuado, fingido que não ouvi, mas não consegui. Virei lentamente, encontrando os olhos dele fixos nos meus.
— O quê? — perguntei, tentando manter o tom neutro, mas a tensão na minha voz me entregava.
— Vai ficar assim até quando? — Ele ajeitou o corpo, sentando-se no sofá, os cotovelos apoiados nos joelhos enquanto me olhava. — Me ignorando como uma criança birrenta.
A raiva voltou a subir pelo meu corpo como um fogo que queimava cada centímetro da minha pele. Cruzei os braços, me encostando no batente da porta.
— Eu não estou te ignorando. Só não quero conversa. Isso é proibido também? — Cuspi as palavras, sentindo meu coração bater forte.
Ele sorriu de lado, aquele sorriso que nunca chegava aos olhos, mas que fazia meu estômago revirar.
— Ninguém te proibiu de nada, Maria Vitória. Mas eu te conheço. É só birra. — Ele inclinou a cabeça, os olhos me avaliando, como se tentasse me desmontar ali, na frente dele.
— Não é birra. É respeito. Que você não teve. — Minha voz saiu mais firme do que eu esperava. — Não tinha o direito de entrar no meu quarto daquele jeito.
Ele se recostou no sofá, passando a mão pelo queixo, como se pensasse em algo que não queria dizer. Depois de um momento de silêncio, respondeu:
— A casa é minha. Mas talvez eu tenha passado do ponto.
Eu pisquei, surpresa com o que ele disse. O Falcão raramente admitia estar errado. Senti uma pontada estranha no peito, como se minha raiva estivesse prestes a desmoronar, mas me forcei a mantê-la firme.
— É, passou mesmo. — Me virei antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa e fui para o meu quarto, batendo a porta com um pouco mais de força do que o necessário.
[...]
No meu quarto, me joguei na cama e encarei o teto, os pensamentos girando na minha cabeça. Por que eu ainda me importava com o que ele dizia? Por que aquele olhar dele mexia tanto comigo? O Falcão não era nada meu. Era o marido da minha mãe, o homem que acolheu a gente na casa dele, que controlava tudo ao nosso redor. Eu deveria odiá-lo, mas, por algum motivo, não conseguia parar de pensar nele.
As lembranças do olhar dele naquela sala, da maneira como ele me observava, vieram com uma intensidade que me fez apertar os olhos. "Que merda é essa, Mavi?" pensei, sentindo meu rosto esquentar.
Fiquei um tempo ali, perdida nos meus pensamentos, até que resolvi sair de casa para esfriar a cabeça. Peguei minha moto e desci o morro, acelerando um pouco mais do que o normal. O vento quente batia no meu rosto, bagunçando meus cabelos, mas eu não me importava. Era minha maneira de escapar.
[...]
Voltei já de noite, e a casa estava silenciosa. Minha mãe devia estar dormindo. Ia subir direto para o meu quarto, mas, ao passar pela sala, vi o Falcão sentado em uma poltrona, mexendo no celular. Ele ergueu os olhos quando me viu, e eu parei por um instante, como se estivesse presa.
— Saiu pra onde? — perguntou, a voz calma, mas carregada de um tom que me irritou.
— Pra dar uma volta. Preciso te avisar agora? — respondi, atravessando a sala sem olhar para ele.
— Precisa, se for voltar tarde desse jeito. — A voz dele soou mais baixa, mas firme o suficiente para me fazer parar.
Me virei, encarando-o.
— Eu não sou sua filha. Você não manda em mim.
Ele me olhou por um instante, os olhos fixos nos meus, intensos, como sempre.
— Eu nunca disse que sou seu pai. Mas se te acontece alguma coisa, a responsabilidade é minha. — Ele se levantou, a altura dele me fazendo me sentir pequena, mesmo que eu tentasse manter a postura.
— Eu me viro sozinha, Falcão. Sempre me virei. — Minha voz saiu mais baixa dessa vez, e, por um instante, vi algo mudar na expressão dele. Uma suavidade, quase um cuidado.
— Eu sei que se vira, Mavi. — Ele passou a mão pelo cabelo, como se estivesse irritado, mas, ao mesmo tempo, tentando se conter. — Mas isso não significa que eu não vou me preocupar.
Não respondi. Apenas subi as escadas, sentindo o olhar dele me seguir até o fim. Fechei a porta do quarto e me joguei na cama, o coração acelerado. Não entendia por que ele me confundia tanto, por que aquela raiva misturada com outra coisa insistia em me atormentar.
A imagem dele continuava na minha mente: a postura firme, os olhos escuros, aquele jeito de falar que parecia ao mesmo tempo um aviso e um cuidado. Balancei a cabeça, tentando afastar aqueles pensamentos, mas era tarde demais. Eu sabia que algo em mim estava mudando, mesmo que eu quisesse negar. E isso me apavorava.

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TODOS OS DEFEITOS DO AMOR
Teen Fiction[Este livro não retrata a realidade nua e crua das favelas, é apenas uma história fictícia com o intuito de entreter] ❝ Uma conexão obscena entre enteada e padrasto ❞ No meio do caos de uma invasão no morro, Falcão, dono do morro, salva Maria Vitóri...