Capítulo 5 - Maria Vitória (Mavi)

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TRÊS ANOS DEPOIS

O calor do Rio de Janeiro parecia abraçar tudo, sem dar trégua, enquanto eu pilotava a moto pelas ruas movimentadas que levavam ao morro. O vento quente contra o meu rosto era quase um alívio, mesmo que não fosse suficiente para apagar o peso dos pensamentos que insistiam em me acompanhar. O motor da moto ronronava alto, um som familiar que se misturava à batida do funk ecoando das vielas. Havia algo de libertador naquele momento, como se a estrada estreita fosse o único lugar onde eu pudesse sentir que tinha o controle.

Assim que entrei no morro, desacelerei e tirei o capacete, deixando os cabelos caírem sobre os ombros. Dentro das vielas apertadas, ninguém usava capacete. Ali tinha suas próprias regras, e eu não era diferente por ser enteada do Falcão. Respirei fundo, sentindo o cheiro de poeira misturado à fumaça de churrasco e ao aroma agridoce do calor acumulado no asfalto. Meus olhos se moviam rápido, atentos às pessoas que andavam pelas calçadas estreitas ou conversavam nas esquinas. Eram cenas do cotidiano que nunca mudavam, mas sempre pareciam carregar um peso silencioso.

Desde que minha mãe começou a se relacionar o Falcão, minha vida virou uma constante tentativa de adaptação. Não era só pela casa dele – maior, mais organizada, com um tipo de luxo contido que me fazia sentir fora do lugar –, mas pela presença dele. O Falcão tinha uma aura que não dava espaço para nada. Era o tipo de homem que impunha respeito apenas pela maneira como andava, falava, ou até pelo silêncio.

Estacionei a moto em frente à casa e desliguei o motor. O barulho cessou, deixando para trás apenas o som distante de uma conversa alta e o ritmo de um pagode vindo de algum lugar próximo. Desci da moto, ajeitando os cabelos com as mãos, e soltei um suspiro. O dia tinha sido exaustivo na universidade e no estágio, mas eu gostava disso. Me ocupava, me distraía. Era como se cada minuto investido naquela rotina corrida fosse uma pequena conquista, uma prova de que eu estava construindo algo só meu.

— Finalmente chegou, hein? — a voz da minha mãe veio do outro lado da porta, cheia de carinho, mas também daquele tom que carregava uma pontinha de preocupação.

Ela sempre dizia que o Rio de Janeiro não era lugar pra andar de moto sozinha, mesmo que eu fizesse isso quase todos os dias.

— Tô bem, mãe. Só tô cansada — respondi, abrindo a porta e entrando.

O cheirinho de comida fresca preencheu o ar assim que entrei na cozinha. Minha mãe estava de avental, mexendo em uma panela, e o calor do fogão fazia sua pele brilhar levemente. Sorri para ela e me sentei à mesa, observando-a.

— Como foi o estágio? Aprendeu muito hoje? — perguntou, virando o rosto para mim e me dando aquele sorriso que fazia todo o cansaço valer a pena.

— Foi puxado, mas bom. Acho que tô pegando o jeito. — Passei a mão pelos cabelos, jogando-os para trás, enquanto sentia o peso do dia sair lentamente dos ombros.

Antes que ela pudesse responder, ouvi passos firmes vindo do lado de fora. Olhei pela janela da cozinha e vi o Falcão. Ele estava no terraço, mexendo em alguma coisa que eu não conseguia identificar. Seus movimentos eram precisos, como sempre, e sua postura tinha aquele mesmo jeito de controle que ele carregava desde o primeiro dia que o conheci. Por um instante, senti um incômodo no peito. Havia algo na maneira como ele parou, ergueu o rosto e me olhou.

Seus olhos me encontraram com uma intensidade que me fez desviar rapidamente. Era quase como se ele soubesse que eu o estava observando. Meu coração acelerou, mas eu forcei a mim mesma a ignorar aquilo. Era só o jeito dele, não era? Aquele olhar que parecia atravessar as pessoas, como se ele pudesse ver o que nós tentávamos esconder.

— Tá tudo bem? — A voz da minha mãe me trouxe de volta, suave, mas atenta.

Ela me olhava com aquela expressão que parecia querer ler os meus pensamentos.

— Tô, só pensando no dia. — Forcei um sorriso, esperando que fosse convincente o suficiente.

Ela assentiu, mas eu sabia que ela não acreditava totalmente. Minha mãe sempre teve uma habilidade irritante de perceber quando algo estava fora do lugar, mas, felizmente, ela não insistiu. Levantei da mesa e peguei um copo d'água, tentando ocupar as mãos e afastar os pensamentos que vinham como um turbilhão.

Depois do jantar, subi para o meu quarto. Precisava de um momento para mim mesma, longe das perguntas silenciosas da minha mãe e da presença inquietante do Falcão. Fechei a porta e me joguei na cama, sentindo o colchão afundar sob o meu peso. As lembranças do olhar dele ainda pairavam na minha mente, e eu não sabia por quê aquilo me incomodava tanto.

"É só coisa da sua cabeça", pensei, virando de lado e puxando o travesseiro para mais perto.

Tentei focar na faculdade, no estágio, em qualquer coisa que não fosse aquela sensação estranha que ele tinha deixado em mim. Mas, por mais que eu tentasse, aquela imagem continuava voltando, como se quisesse me dizer algo que eu não estava pronta para ouvir.

Uma batida firme na porta me arrancou dos pensamentos. Sentei na cama, ajeitando o cabelo, enquanto a voz grave e familiar de Falcão atravessava a madeira.

— Mavi, posso falar com você? — Ele não esperou por uma resposta antes de abrir a porta parcialmente, encostando no batente com aquele ar despreocupado que escondia um controle absoluto.

— O que foi? — perguntei, tentando soar casual, mas minha voz traiu uma ponta de curiosidade.

— Seu aniversário tá chegando. O que você quer pra comemorar os seus vinte anos? — Ele cruzou os braços, os olhos fixos nos meus, como se quisesse avaliar cada reação minha.

Suspirei, cruzando as pernas na cama e tentando evitar o peso daquele olhar.

— Nada. A moto que você me deu no ano passado já tá de bom tamanho. — Sorri de leve, esperando que isso encerrasse o assunto.

Ele soltou um riso curto, mas não desviou os olhos.

— Você não quer nada mesmo?

Balancei a cabeça, mantendo o sorriso educado.

— Não. Já tô satisfeita.

Falcão permaneceu mais alguns segundos em silêncio antes de assentir devagar.

— Certo. Se mudar de ideia, me avisa. — Ele saiu, fechando a porta com cuidado, mas o peso da sua presença parecia continuar no quarto mesmo depois que ele foi embora.

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