Capítulo 4 - Rodrigo (Falcão)

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ALGUNS MESES DEPOIS...

O calor ainda não dava trégua. Os dias no morro pareciam mais longos, e a poeira das vielas misturava-se ao cheiro forte de comida sendo preparada nas casas. O som das crianças correndo, os gritos de uma discussão ao longe e a música alta de algum boteco compunham o cenário que eu observava do meu terraço.

Agora, com Liliane e Mavi morando sob o meu teto, a dinâmica da minha rotina mudara. Eu ainda estava me acostumando à presença constante delas em minha casa, mas a verdade é que eu não me arrependia.

Liliane era uma mulher forte, daquelas que carregavam nos olhos a experiência de uma vida dura. Apesar disso, trazia uma leveza que eu não sabia que precisava. A voz dela, muitas vezes cantando enquanto cozinhava ou organizava algo, preenchia o espaço vazio que antes era dominado apenas pelo som de meus pensamentos. Mavi, por outro lado, ainda era uma figura intrigante para mim. A garota mal falava comigo desde que chegaram, mas seus olhares silenciosos e cheios de desconfiança diziam mais do que qualquer palavra poderia.

Estava encostado no parapeito do terraço, observando o movimento das vielas, quando ouvi o barulho característico da porta se abrindo. Os passos leves e hesitantes me fizeram virar a cabeça. Era Mavi, segurando um livro contra o peito, como se fosse uma armadura.

— Posso ficar aqui um pouco? — perguntou, sem me encarar diretamente.

A voz dela era baixa, quase um sussurro, mas carregava um tom de desafio.

Assenti com a cabeça, mantendo a postura relaxada, mas atento às reações dela.

— O terraço é grande. Não tem dono. — Minha voz saiu calma, quase desinteressada, mas dentro de mim havia uma curiosidade crescente.

Ela caminhou até o canto oposto, sentando-se no chão e abrindo o livro. Fingi voltar minha atenção às vielas, mas observava de rabo de olho enquanto ela se ajeitava. O vento leve balançava os cabelos dela, e o som das páginas sendo viradas me trazia uma tranquilidade inesperada.

— Gostando da casa? — perguntei depois de alguns minutos, quebrando o silêncio.

Minha voz soou mais direta do que eu pretendia.

Ela levantou os olhos, me encarando com aquela expressão que misturava cautela e curiosidade.

— É diferente... — respondeu, com um tom que não deixava claro se era um elogio ou uma crítica. — Espaçosa. Tranquila demais.

Ri baixo, cruzando os braços enquanto a observava.

— Tranquila não é uma palavra que eu escuto muito por aqui. Mas entendo o que quer dizer.

Ela deu de ombros e voltou a olhar para o livro, mas eu sabia que ela estava ouvindo. Havia algo na postura dela, na maneira como as mãos seguravam o livro com mais firmeza do que o necessário.

— E sua mãe? — continuei. — Parece que tá se adaptando bem.

— Minha mãe se adapta a qualquer coisa. Ela teve que aprender. — A voz dela saiu firme, quase defensiva, mas percebi uma pontinha de orgulho nas palavras.

Assenti novamente, reconhecendo a força daquelas palavras. Liliane realmente era impressionante. Desde que chegou à minha casa, trouxe uma organização silenciosa, como se tentasse transformar aquele espaço em um lar de verdade.

O silêncio voltou a se instalar, mas dessa vez parecia menos desconfortável. Mavi continuava lendo, e eu permaneci no parapeito, observando o movimento lá embaixo. Até que a voz dela quebrou o ritmo tranquilo do momento.

— Por que você deixou a gente ficar aqui? — perguntou de repente, os olhos fixos nos meus, desafiadores.

Olhei para ela por um instante, avaliando a sinceridade daquela pergunta. Respirei fundo antes de responder.

— Porque achei que vocês mereciam uma chance. E porque sua mãe me pediu.

Ela arqueou as sobrancelhas, claramente insatisfeita com a resposta simples.

— Só isso?

— Não é suficiente? — retruquei, mantendo o tom calmo, mas com os olhos fixos nos dela.

Mavi não desviou o olhar, mas também não respondeu. O silêncio dela me fez sorrir de leve.

Minutos depois, Liliane apareceu na porta, chamando-a para o jantar. A garota se levantou devagar, guardando o livro e me dando um último olhar que parecia carregar mais perguntas do que respostas. Quando ela saiu, senti o terraço estranhamente vazio.

Naquela noite, enquanto Liliane dormia ao meu lado, fiquei encarando o teto, perdido em pensamentos. A presença delas tinha trazido uma nova energia para a casa, mas também um desafio que eu não estava acostumado a enfrentar.

Mavi era novinha, mas havia algo nela que me fazia querer entender mais, proteger mais. Seus cabelos castanho-claros e ondulados pareciam capturar a luz de um jeito que me fazia notar detalhes que eu nem deveria. Os olhos castanhos, expressivos e atentos, carregavam um peso que não combinava com suas feições delicadas. E isso era perigoso.

Eu sabia que precisava manter uma distância emocional, mas com cada dia que passava, isso se tornava mais difícil.

Fechei os olhos, tentando afastar esses pensamentos, mas antes que o sono me alcançasse, ouvi os passos leves de Mavi no corredor. O som das meias contra o chão me fez abrir os olhos lentamente, mas algo estava diferente. Ela entrou no quarto sem hesitar, os cabelos soltos caindo sobre os ombros, e me encarou com aquele olhar que misturava coragem e vulnerabilidade.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela se aproximou, sentando-se ao lado da cama. Sua mão tocou meu rosto de leve, e o calor do toque fez minha respiração vacilar. Então, sem aviso, ela se inclinou e me beijou. Foi um beijo tímido, mas intenso, e meu corpo reagiu antes que minha mente pudesse processar. Minhas mãos seguraram a cintura dela, puxando-a para mais perto, e por um instante o mundo pareceu parar.

Mas então acordei. O quarto estava escuro, e o som ritmado da respiração de Liliane me trouxe de volta à realidade. Passei a mão pelo rosto, tentando afastar o calor que ainda sentia. Foi só um sonho, mas a sensação era tão real que me deixou inquieto. Fechei os olhos novamente, sabendo que o sono seria difícil de encontrar outra vez.

Eu estava muito fodido da cabeça e não sabia o que fazer para voltar ao normal.

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