As vielas do morro, agitadas pelo calor que não dava trégua, pareciam respirar um ritmo próprio. Eu estava no alto, de onde dava para ver o movimento constante de motos subindo e descendo, crianças brincando com o que tão pouco tinham, enquanto as mulheres carregavam sacolas pesadas ou penduravam roupas nos varais. A cena era quase rotineira, mas minha mente estava longe de qualquer rotina.
Eu não conseguia tirar Mavi da cabeça. Desde aquele encontro no meio do tiroteio, algo nela tinha mexido comigo. Eu sabia que deveria deixar isso de lado. Havia coisas mais importantes para lidar, problemas maiores no morro, mas a imagem dela não me deixava em paz.
— Tonho! — chamei, a voz firme ecoando pela viela. Em poucos minutos, ele apareceu, com a camisa encharcada de suor e o olhar sempre alerta. — Qual é a da Liliane, mãe da garota? Ela é tranquila?
Ele franziu a testa por um momento, mas não ousou questionar o porquê da minha pergunta. Era um dos motivos pelos quais confiava nele.
— Dona Liliane é de boa. Vive na dela, sempre arrumando uns bicos de faxina. Nunca deu problema pra ninguém.
Assenti, tentando disfarçar o interesse que crescia em meu peito. Se queria me aproximar de Mavi sem levantar suspeitas, o caminho mais fácil seria através da mãe dela.
— Vê com o pessoal lá de baixo se ela precisa de alguma coisa. E me avisa. — Minha voz saiu controlada, mas firme, deixando claro que não queria erros.
Tonho não perguntou mais nada, apenas acenou e saiu. Fiquei parado por um momento, observando o horizonte enquanto os pensamentos corriam livres. Aí estava eu, um homem que tinha o controle do morro, planejando formas de me aproximar de uma garota que, racionalmente, deveria ser apenas mais um rosto entre tantos.
[...]
No dia seguinte, me certifiquei de que Liliane estivesse em casa antes de descer até lá. Carregava uma sacola cheia de mantimentos, algo que costumava fazer para algumas famílias quando podia. Ao chegar à frente da casa – uma construção pequena, mas limpa e bem cuidada – bati duas vezes na porta de madeira descascada.
— Já vai! — A voz de Liliane veio de dentro, e poucos segundos depois ela abriu a porta, os cabelos presos de forma apressada e o olhar ligeiramente surpreso ao me ver ali.
— Dona Liliane, é isso? — perguntei, com um leve sorriso que pretendia ser amistoso.
— Sou eu mesma. — Ela parecia um pouco nervosa, ajeitando o avental sobre a roupa simples. — O que o senhor quer?
— Nada demais. Trouxe umas coisas pra ajudar. Sei que as coisas não têm sido fáceis. — Levantei a sacola, deixando que ela visse o conteúdo. Arroz, feijão, macarrão e um pouco de carne.
Os olhos dela brilharam por um instante, mas ela rapidamente tentou esconder qualquer traço de vulnerabilidade.
— Não precisava, não. A gente se vira.
— Sei que se vira. Mas às vezes é bom aceitar uma ajuda. É de coração. — Minha voz saiu calma, quase suave, e percebi quando ela relaxou um pouco.
— Bom... então, obrigada. — Ela deu um passo para trás, como se estivesse considerando me convidar para entrar.
Decidi facilitar.
— Posso deixar aqui dentro? Não quero que fique carregando sozinha.
Ela hesitou por um momento, mas finalmente abriu mais a porta, me dando espaço para entrar. A casa era simples, mas organizada. O cheiro de café fresco preenchia o ar, misturado ao aroma de um sabonete barato que me lembrava algo familiar.
— Pode deixar aí na mesa. — Ela indicou com um gesto, ainda me observando como se tentasse decifrar minha intenção.
Coloquei a sacola na mesa e me virei para ela.
— Como estão vocês duas? É muito peso perder um homem da casa, mesmo com... as circunstâncias. — Escolhi as palavras com cuidado, observando a reação dela.
Liliane suspirou, cruzando os braços como se tentasse se proteger de algo invisível.
— Nós estamos melhor sem ele, pra ser sincera. Mas não quer dizer que seja fácil. Mavi sente falta de um pai, mesmo que... — Ela parou, parecendo repensar as próprias palavras.
— Mesmo que ele não fosse um bom pai. — Completei, deixando que minha voz carregasse um tom compreensivo.
Ela apenas assentiu.
Por um instante, o silêncio se instalou entre nós. Liliane parecia estar decidindo se podia confiar em mim ou não. Eu sabia que ela era esperta, que não se deixava enganar facilmente.
— E a Mavi? Como ela tá lidando com isso tudo? — perguntei, tentando soar casual enquanto observava cada detalhe do rosto dela.
— Ela é forte, mas... é difícil pra ela. Tem muita coisa acontecendo nesse morro. Tem dia que acho que ela carrega mais peso do que devia pra idade. — A voz de Liliane tremeu ligeiramente, revelando uma preocupação genuína.
— Você criou uma menina forte. Ela tem fibra. — As palavras saíram mais verdadeiras do que eu pretendia, e percebi quando Liliane relaxou ainda mais.
— Obrigada, seu Falcão. É bom ouvir isso. — Ela sorriu, um sorriso pequeno, mas verdadeiro.
Passei mais alguns minutos conversando com ela, mantendo o tom leve e atencioso. A cada palavra, percebia que minha estratégia estava funcionando. Liliane começava a confiar em mim, e isso significava que eu poderia estar mais presente na vida de Mavi sem que parecesse estranho.
Quando saí da casa, o sol já estava alto, castigando a pele. As vozes do morro continuavam a ecoar, mas minha mente estava focada em um objetivo. A proximidade com Liliane era apenas o começo de um plano maior. Eu sabia que me envolver com Mavi era um risco, talvez o maior que eu já tinha corrido. Mas, por algum motivo que não conseguia explicar, sentia que valia a pena.
A facção tinha suas regras, e eu as conhecia melhor do que qualquer um. Agora, era minha vez de dobrá-las em meu favor.
O caminho de volta para o alto do morro foi acompanhado por uma mistura de inquietação e determinação. Eu sabia que cruzar essa linha significava mexer com o equilíbrio frágil que eu mesmo construí. No entanto, algo em Mavi despertava em mim um desejo de proteção que ia além da razão. E isso me assustava.

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TODOS OS DEFEITOS DO AMOR
Teen Fiction[Este livro não retrata a realidade nua e crua das favelas, é apenas uma história fictícia com o intuito de entreter] ❝ Uma conexão obscena entre enteada e padrasto ❞ No meio do caos de uma invasão no morro, Falcão, dono do morro, salva Maria Vitóri...