O calor daquela manhã grudava na pele, deixando o ar pesado e abafado. Eu estava no alto do morro, observando o movimento das vielas como sempre fazia, atento às motos subindo e descendo, aos moleques correndo com recados e às vozes que ecoavam das casas. Cada som, cada movimento, tinha seu significado, e eu aprendi a decifrar cada um deles. Era o meu trabalho. Minha responsabilidade. Aos 36 anos, já tinha visto e feito mais coisas do que a maioria das pessoas poderia imaginar.
— Falcão, os caras tão se organizando. Parece que hoje vai ter. — A voz de Tonho, um dos meus homens de confiança, cortou meus pensamentos.
Assenti, cruzando os braços enquanto olhava para o horizonte. O "ter" que ele mencionava era uma invasão. Sabíamos que a facção rival estava armando alguma coisa há dias. Nesse jogo, a paz nunca durava muito tempo. Olhei para ele, que aguardava minhas ordens.
— Reforça os pontos de acesso. Quero todo mundo atento. Se virem movimento, avisa antes de agir. — Minha voz saiu firme, sem pressa. A experiência me ensinou que o controle é mais poderoso do que a pressa.
Tonho saiu rápido, e eu fiquei parado mais alguns minutos. Sempre antes de um conflito, vinha aquele momento de reflexão. Pensei na quantidade de sangue que já tinha visto escorrer por aquelas vielas e me perguntei quanto mais seria derramado antes que tudo isso acabasse. Se é que um dia acabaria.
O som dos tiros me arrancou das reflexões. Eles vieram rápidos, secos, cortando o ar e espalhando pânico pelas ruas. Desci apressado, os passos firmes ecoando pelas vielas enquanto o som de gritos e correria aumentava. A adrenalina começava a pulsar no meu peito, mas minha mente permanecia fria. Em situações assim, o controle é tudo.
Foi no meio desse caos que eu a vi. Ela estava parada, como se congelada, os olhos arregalados e o corpo trêmulo. Era uma garota, no meio de uma cena que não deveria fazer parte de nenhuma vida, muito menos da dela. Não pensei duas vezes. Cruzei o espaço entre nós em segundos e agarrei o braço dela, puxando-a com força.
— Vem comigo, agora! — disse, a voz mais dura do que eu pretendia, mas não havia tempo para gentilezas.
Ela quase tropeçou, mas seguiu meu ritmo enquanto eu a guiava por vielas estreitas, fugindo do som dos tiros. Meu fuzil balançava no ombro, a mão livre pronta para sacar a arma se fosse preciso. Entrei em uma casa abandonada, trancando a porta atrás de nós. Respirei fundo, tentando acalmar o coração acelerado. Olhei para ela. Seus olhos estavam arregalados, o peito subindo e descendo em respirações rápidas.
— Você é quem? — ela perguntou, a voz trêmula.
Puxei a máscara para baixo, revelando meu rosto. Ela precisava saber com quem estava falando.
— Falcão. — Minha voz saiu firme, mas calma. Vi o reconhecimento passar pelos olhos dela.
— Eu... eu sou a Mavi. Filha do Gouveia. — As palavras saíram hesitantes, quase um sussurro.
Fiquei em silêncio por um instante, absorvendo o que ela havia dito. Gouveia. O homem que eu matei. Porém, não havia remorso. Negócios eram negócios. Ele tinha ultrapassado todos os limites e pago o preço.
— Sinto muito pelo seu pai, mas negócios são negócios. — Minha voz era baixa, quase um murmúrio, mas carregava um peso que me fez estremecer.
Ela hesitou, mas logo respondeu:
— Você fez um favor pra mim e pra minha mãe — disse, as palavras saindo antes que pudesse pensar.
Por um momento, deixei um sorriso sutil escapar. Eu sabia da situação. Sabia que o Gouveia não prestava nem para a própria família. Por isso, nunca tive problemas em deixá-las ficar no morro.
— Eu sei. E é por isso que vocês ainda estão aqui. — Minha voz era firme, mas não ameaçadora.
Ela assentiu, o corpo ainda trêmulo, mas os olhos fixos nos meus. Por um instante, senti algo que não deveria estar ali. Um instinto de proteção mais forte do que o comum. Não era apenas a regra da facção que me impedia de agir. Era algo mais profundo, mais complicado. Eu sabia que ela era jovem demais, e as regras existiam por um motivo. Mas isso não impedia a minha mente de trabalhar contra mim.
O som dos tiros começou a diminuir. Respirei fundo, quebrando o silêncio.
— Quando tudo isso acabar, eu vou te levar de volta pra sua casa. Mas não fica andando sozinha assim. O morro ainda tá perigoso com os caras da facção do teu pai querendo vingança.
— Eu... só tava indo pra escola — expliquei, tentando recuperar algum controle da situação.
— É melhor você repetir de ano do que sua mãe te encontrar morta na rua.
[...]
No caminho, mantive-a perto de mim. O morro estava mais calmo, mas o cheiro de pólvora ainda pairava no ar. As crianças voltavam a brincar como se nada tivesse acontecido, e as conversas recomeçavam em tons abafados. Quando chegamos a uma viela mais movimentada, parei.
— Agora cê pode ir. E, lembra, não anda sozinha nessas horas. — Minha voz tinha um tom mais ameno, mas ainda carregava a autoridade que eu precisava manter.
Ela olhou para mim, hesitante. Por um instante, pensei que fosse dizer algo, mas não disse. Apenas assentiu e seguiu o caminho. Fiquei parado, observando enquanto ela desaparecia no labirinto de casas.
De volta à minha rotina, minha mente não conseguia desligar daquela garota. Eu sabia que não deveria pensar nela, que havia coisas mais importantes para cuidar. Mas, a cada momento de silêncio, a imagem de Mavi voltava, trazendo com ela uma sensação que eu não sabia como controlar.
Há regras que eu mesmo ajudei a criar. Não se envolver com garotas menores de idade. Era simples, direto. Dava menos problemas. Mas, com ela, parecia mais difícil. Tudo nela me puxava, desde a coragem escondida no medo até a maneira como ela me olhou, sem desviar. Eu sabia que precisava manter distância, mas também sabia que isso seria um desafio. Talvez o maior de todos.
No fundo, eu queria estar por perto. Cuidar, proteger. Mas, ao mesmo tempo, temia o que isso significava. Porque, nesse mundo, nada vem sem consequências. E eu estava prestes a descobrir que algumas atrações são impossíveis de ignorar.

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TODOS OS DEFEITOS DO AMOR
Teen Fiction[Este livro não retrata a realidade nua e crua das favelas, é apenas uma história fictícia com o intuito de entreter] ❝ Uma conexão obscena entre enteada e padrasto ❞ No meio do caos de uma invasão no morro, Falcão, dono do morro, salva Maria Vitóri...