Capítulo 1 - Maria Vitória (Mavi)

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O despertador tocou, cortando o silêncio abafado do meu quarto. A luz fraca do amanhecer filtrava-se pela cortina, tingindo o ambiente com um tom pálido e frio. Suspirei, sentindo o peso do dia nas costas antes mesmo de sair da cama.

Estiquei o braço, desliguei o despertador e me sentei na beirada da cama, esfregando os olhos. O calor úmido da manhã já começava a grudar na pele, mesmo com o ventilador que girava preguiçosamente. Caminhei até o banheiro com passos arrastados, sentindo o chão frio sob os pés.

A água do chuveiro era gelada, mas era o que eu precisava para acordar de verdade. Deixei que ela escorresse pelos meus ombros enquanto respirava fundo. O sabonete barato tinha um cheiro cítrico, familiar, e o barulho da água caindo abafava qualquer outro som vindo da rua. Quando terminei, sequei o corpo com uma toalha já áspera pelo tempo e enrolei outra ao redor do cabelo, que pingava preguiçosamente.

De volta ao quarto, vesti meu uniforme com movimentos automáticos. Diante do espelho, passei uma maquiagem leve, apenas o suficiente para suavizar o cansaço do rosto. Soltei os cabelos úmidos, passei o pente nos fios com cuidado, deixando-os secarem na frente do ventilador, porque meu secador parou de funcionar.

Na cozinha, o som de panela no fogão e a voz suave da minha mãe, Liliane, cantarolando uma música gospel qualquer, me fizeram sorrir. Ela sempre tentava transformar as manhãs em algo suportável, mesmo que o peso do que vivíamos não fosse fácil de ignorar.

— Levanta logo, Mavi. O café já tá pronto. — A voz dela atravessou a porta do meu quarto, firme, mas com aquele tom de carinho que eu conhecia bem.

Saí do meu quarto e fui em direção a ela.

— Já tô aqui, mãe — respondi, puxando uma cadeira e me sentando à mesa.

Minha mãe estava de avental, os cabelos loiros presos de um jeito apressado, com fios soltos caindo no rosto. Seus olhos carregavam marcas de cansaço, mas também uma força que eu admirava. Ela colocou uma xícara de café à minha frente e um pão com margarina no prato.

— Vai querer o quê no pão? — perguntou, ajeitando os ombros como se quisesse parecer despreocupada.

— Assim tá bom. — Minha voz saiu baixa.

Eu sabia que, não importa o que ela colocasse, o pão sempre teria o gosto amargo da nossa realidade.

Nos últimos meses, tudo tinha mudado. A morte do meu pai trouxe alívio, mas também trouxe um vazio estranho. Ele nunca foi bom para nós. Era violento, egoísta e cruel. Batia na minha mãe sem piedade, e eu, quando tentava intervir, recebia minha parte também. Não era segredo para ninguém no morro que Gouveia não era boa gente. Quando a facção inimiga invadiu e o matou, muitos acharam que nós comemoraríamos. Mas é difícil celebrar algo que deixa um buraco tão grande, mesmo que o que saiu fosse podre.

Depois disso, quem assumiu o comando foi o Falcão. Minha mãe teve que implorar para ele nos deixar ficar no morro. Disse que não tinha para onde ir, que só queríamos paz. Ele deixou, talvez por pena ou talvez porque sabia que meu pai nunca nos tratou bem e não tínhamos interesse algum em vingar a morte dele. De qualquer forma, continuamos aqui, mas não era fácil.

— Não vai se atrasar pra escola, hein? — Minha mãe me alertou, colocando duas maçãs na minha mochila.

— Vou sair agora. — Peguei minha mochila, dei um beijo no rosto dela e saí.

O morro estava agitado como sempre, com crianças correndo, música tocando em algum lugar distante e motos passando rápido demais pelas vielas estreitas. Eu já estava acostumada com a confusão, mas ainda assim sentia uma tensão constante, como se algo pudesse dar errado a qualquer momento. E deu.

O barulho dos tiros veio de repente, cortando o ar como um trovão. Congelada, olhei para os lados, tentando entender de onde vinha o som, mas tudo parecia estar acontecendo ao mesmo tempo. As pessoas gritavam, corriam, buscavam abrigo. Meu coração disparou e minhas pernas pareceram travar. Antes que eu pudesse reagir, senti uma mão firme agarrar meu braço.

— Vem comigo, agora! — A voz era grave, urgente, quase um rosnado.

Fui puxada com tanta força que quase tropecei. O homem que me segurava usava uma máscara preta que escondia metade do rosto, mas era impossível não notar as tatuagens que cobriam seus braços. Ele me guiou por vielas que eu nunca tinha visto antes, até pararmos em uma casa abandonada.

Lá dentro, ele trancou a porta e se virou para mim. O fuzil pendurado em seu ombro brilhava sob a luz fraca que entrava por uma fresta na parede. Meu coração batia tão rápido que achei que fosse desmaiar.

— Você é quem? — perguntei, minha voz tremendo mais do que eu gostaria.

Ele puxou a máscara para baixo, revelando um rosto que eu já tinha ouvido falar, mas nunca visto de perto. Olhos escuros, barba por fazer e uma presença que parecia preencher todo o espaço.

— Falcão — disse apenas isso, como se o nome fosse suficiente para explicar tudo.

Meu estômago revirou.

— Eu... eu sou a Mavi. Filha do Gouveia. — As palavras saíram antes que eu pudesse pensar no que estava dizendo.

Ele estreitou os olhos, analisando-me por um instante que pareceu durar uma eternidade.

— Sinto muito pelo seu pai, mas negócios são negócios. — Sua voz era baixa, quase um murmúrio, mas carregava um peso que me fez estremecer.

— Você fez um favor pra mim e pra minha mãe. — Deixei escapar antes de conseguir me conter.

Um sorriso sutil surgiu no canto de seus lábios.

— Eu sei. E é por isso que vocês ainda estão aqui. — Ele apontou o dedo na minha direção, mas o tom era mais protetor do que ameaçador.

Assenti, incapaz de formular uma resposta.

O som dos tiros começou a diminuir do lado de fora. Falcão olhou para a janela e depois de volta para mim.

— Quando tudo isso acabar, eu vou te levar de volta pra sua casa. Mas não fica andando sozinha assim. O morro ainda tá perigoso com os caras da facção do teu pai querendo vingança.

— Eu... só tava indo pra escola — expliquei, tentando recuperar algum controle da situação.

Ele deu de ombros.

— É melhor você repetir de ano do que sua mãe te encontrar morta na rua. — A frieza nas palavras dele me atingiu como um tapa.

Ficamos em silêncio por um tempo, cada um perdido nos próprios pensamentos. Apesar do medo, havia algo em Falcão que me deixava curiosa. Ele não era o monstro que eu esperava. Ou talvez fosse, mas havia mais ali do que eu conseguia enxergar naquele momento.

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